OS COMBOIOS NO BARREIRO: UM LEGADO, UMA MEMÓRIA, UMA REALIDADE

OS COMBOIOS NO BARREIRO: UM LEGADO, UMA MEMÓRIA, UMA REALIDADE

« O apito da locomotiva a vapor traz o vento e a chuva quente, cortando o frio Inverno de Leste. Ergue-se estridente sobre o silêncio ensurdecedor da vila a Norte, embalada na noite longa da laboração continua. O traço descontínuo das linhas do Caminho de Ferro a Sul, une o esforço transformador da Fábrica debruçada no Tejo calmo e do Homem da cidade nova rigorosamente vigiada ».

UMA MEMÓRIA

-Puiiii ! Puiiii !

O comboio de manobras aproxima-se devagar, o ligeiro aviso não perturba os apressados que não respeitam as cancelas fechadas e os ralhos do guarda-vigilante sempre abespinhado.

-Dá tempo ! – comenta um incauto transeunte em viagem rápida para o outro lado.

Dá tempo, ressoa no ouvido jovem e absorto nas preocupações do exame fundamental que anda a preparar cuidadosamente com o professor Prates, na residência do velho mestre na Quinta Pequena.

As linhas sucedem-se paralelas, é preciso vencer a segunda por onde habitualmente vem a pequena locomotiva a diesel, puxando carruagens e vagões vazios. De repente o passo foi travado instintivamente por outro apito mais estridente e prolongado, entrecortado num gaguejar dramático :

– Puiiim…puiiim ! Puiiim…puiiim !

A retina regista os últimos momentos de um acenar trágico do maquinista da locomotiva em manobras, enquanto o sopro intenso do comboio de passageiros que passa veloz para o Sul, e estivera encoberto até ao último momento, faz varejar as pernas e vacilar o corpo apavorado no pequeno intervalo que separa as duas vias.

O grito do guarda da passagem e um outro de mulher que percebera a cena, chegam como sussurros de uma voz simultânea, esbatidos pelo fragor tremendo do «Rápido» que vai para o Algarve a todo o gás.

-Ai, Jesus! Que desgraça ! Cuidado !

Uma persistente lividez e uma angústia paralisante, mantêm o corpo hirto, de escassas quinze primaveras, no local estreito onde chega esbaforido o guarda-linhas, cheio de reprovações :

-Qualquer dia acontece aqui uma desgraça ! Não vêem o que andam a fazer!…

A reprimenda era mais um desabafo de quem estava verdadeiramente preocupado e aliviado com o desenlace final.

– Desculpe ! – foi a única resposta sentida, encabulada, vinda do fundo do peito, como se de um filho se tratasse, apanhado em falta grave pelo pai. Só depois retomou o caminho, intimidado, como se todo o mundo o estivesse a censurar.

Percebeu então o que o subconsciente entendera no meio da confusão de apitos e gritos. O aviso/ alarme do maquinista do comboio em manobras, debruçado na cabina:

-Não se mexa ! Não se mexa !

Salvara-lhe a vida.

UM LEGADO

De Barcelona recebemos o exemplo paradigmático de uma gestão estratégica do Património Arqueológico Industrial, estruturado por muitos quilómetros nos arredores da grande metrópole. Aproveitando os legados de uma fábrica têxtil, de uma antiga cerâmica e de uma mina desactivada, organizadas em rede museológica visitável e auto sustentada, com muitos equipamentos antigos a funcionarem, para gáudio dos velhos operadores e surpresa e encanto dos mais novos. Até uma rede ferroviária interna está a funcionar (salvo erro na antiga têxtil) para os visitantes – turistas culturais ou simples curiosos.

No Barreiro, com um Património Arqueológico Industrial riquíssimo, concentrado num raio de poucos quilómetros, temos a imagem do abandono, do desleixo, do «deixa estar que o tempo há-de resolver»,da falta de uma visão estratégica que permita a perpetuação e o usufruto das memórias ainda vivas de um passado recente, condição «sine qua non» para a compreensão do presente,e para as escolhas do futuro.

Os últimos acontecimentos no âmbito ferroviário deixam-nos muito preocupados:

-A construção de um terminal caríssimo e desamparado da linha electrificada, deixando ao abandono e degradação a lindíssima e abrigada estação ferro – fluvial inaugurada em 1884 (dita de Miguel Paes ).

– A destruição total do velho edifício da Casa dos Ferroviários, no Barreiro Velho, onde desde 1922, funcionou ininterruptamente o Sindicato dos Ferroviários do Sul, atravessando o sindicalismo livre da I República, o sindicalismo corporativo-fascista da ditadura e o sindicalismo em liberdade pós 25 de Abril. Estará ao menos prevista a inclusão de elementos da fachada singular no novo edifício em construção? Ou um grande painel de azulejos alusivo à História heróica do sindicalismo ferroviário?

– A perspectiva sombria de encerramento das velhas Oficinas do Caminho de Ferro (hoje EMEF), desde 1884, onde funcionou a primeira gare-estação ferroviária do Sul, com o despedimento de mais de duas centenas de operários especializados!

 

Olhemos para a frente!

Metaforicamente, depois de compreendermos o passado e de intervirmos criticamente no presente , façamos um regresso ao futuro.

Imaginemos que com a responsabilização e contribuição dos construtores da nova Ligação de Alta Velocidade, da RAVE, da CP, da REFER,da Câmara Municipal do Barreiro, dos empreendedores imobiliários na área consignada, da Fundação do Museu Nacional Ferroviário, dos Amigos do Caminho de Ferro, do Ministério da Cultura e do Instituto do Património, das Estruturas Associativas preocupadas, das Estruturas dos Trabalhadores sensibilizadas, dos cidadãos interessados, até de alguma Estrutura Supranacional correlacionada, fazemos daqui a alguns anos ( ou os nossos filhos e netos…) uma viagem histórico – turística pelo nosso Roteiro das Memórias, recuperado organizado e gerido de forma autosustentada pela Fundação para o Património Arqueológico Industrial do Barreriro, com o apoio do Núcleo Associativo dos Antigos Ferroviários.

O comboio apita na velha gare, a viagem inaugural vai começar !…

 

UMA REALIDADE

Os barreirenses que (con)viveram durante 150 anos com os comboios, preservam viva a sua memória que pretendem transmitir intacta aos vindouros, condição para que o transporte ferroviário ressuscite como um esteio do progresso futuro da cidade.

Armando de Sousa Teixeira

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