I. O AVANÇO DA CONTRA-REVOLUÇÃO

          Desta vez Alberta tinha o compromisso maternal de puérpera ainda em período de amamentação, e não viria à concentração no Terreiro do Paço onde continuavam a chegar os manifestantes vindos da Rua Augusta e da Rua do Ouro.

            Dezenas de milhares de participantes com os seus cartazes e panos identificativos e as comuns palavras de ordem, desaguavam no grande terreiro que ia ficando repleto num mar de gente a perder de vista.

           João não era especialista em acrobacias, mas não resistiu a subir para o ressalto de um candeeiro metálico característico da praça, à beira da paragem dos eléctricos, aproveitando uma caixa de regulação do abastecimento de energia eléctrica.

           O que se divisava dali era uma enorme mancha humana alongando-se até ao Cais das Colunas, cem mil presenças foi o número que lhe ocorreu à mente, uma enorme mobilização naquele final do mês de Outubro, quando as notícias soavam preocupantes devido aos avanços da contra-revolução por várias vias do tortuoso caminho do processo revolucionário em curso.

           Empoleirado em equilíbrio instável recordava alguns registos e acontecimentos significantes:

           – A divisão entre os militares de Abril, principais garantes da revolução democrática, a partir do Manifesto do chamado “Grupo dos Nove”, de 7 de Agosto.

           – Os atentados bombistas no centro e no norte do país, levados a cabo desde Junho pelo ELP e o MDLP, contra sedes do PCP e do MDP.

           – A mobilização de caceteiros contra a Reforma Agrária, conduzidos pela CAP no norte do distrito de Lisboa e no Ribatejo.

           – A unidade espúria do PS de Mário Soares com a direita e a sua expressão concreta no Comício da Alameda D. Afonso Henriques, em Junho p.p.

           – A sabotagem económica de patrões e outros vilões do capitalismo caseiro acossado e do europeu imperialista e intervencionista.

           – As ameaças belicistas e as interferências da “inteligência” estrangeira (CIA e britânicos).

           – O laxismo e a indisciplina fomentada nos quartéis e a acção destruidora oportunista nalgumas escolas, do radicalismo pseudo-revolucionário (MRPP e ml’s vários).

           – A destituição do V governo provisório do general Vasco Gonçalves e a nomeação do VI Governo, com o almirante Pinheiro de Azevedo, em 19/9/75.

           – A conspiração contra-revolucionária que medrava à sombra da divisão dos militares, e as ilusões “putchistas” aventureiras de sectores pseudo-revolucionários e de extremados confusionistas.

           – A previsível precipitação dos acontecimentos, previamente preparados pelos militares contra-revolucionários “moderados”, a pretexto da “conspiração comunista” e da criação da “Comuna de Lisboa” pela “esquerda militar”.

           Apesar da força que imanava daquela imensa concentração e dos discursos cheios de esperança, uma percepção angustiante assaltava o espírito do jovem ex-miliciano que enveredara pelo ensino, após regresso da Guerra Colonial, numa experiência profissional muito interessante, no agitado mundo das escolas secundárias em efervescência e em transformação radical para o ensino unificado.

           Os semblantes sérios dos que estavam por perto e não ligavam muito aos altifalantes, conversando em grupos circunspectos, davam a dimensão das preocupações que a situação política gerava. Ainda há pouco, enquanto vislumbrava a imensa concentração em cima do ressalto do candeeiro de iluminação, que entretanto acendera uma luz mortiça lá no alto, dentro do globo translúcido frio e inacessível, elencara mentalmente os acontecimentos recentes do avanço da contra-revolução,

           Algo no cérebro lhe dizia que apesar daquela enorme mole humana, a revolução corria risco de morte e não sendo supersticioso, pressentia que aquela seria a última vez que ali se encontraria tanta gente a defender Abril.

           Um imenso calafrio percorreu-lhe o corpo. A tarde do dia 23/10/75 não estava fria, o Sol raiara até declinar a Oeste, num horizonte vermelho avassalador, a cor da esperança nas transformações revolucionárias no velho e agitado país à beira Atlântico, no extremo da Europa expectante em relação à revolução mais avançada da segunda metade do século XX.

           Eram quase nove horas, saiu da praça lentamente pelas arcadas laterais até à estação do Sul e Sueste, para a viagem de regresso à margem esquerda e à sua condição subsistente em casa dos progenitores no bairro operário e solidário.

           Alberta estranhou o seu semblante triste e preocupado, questionando:

           – Como esteve a manifestação, não teve muita gente?

           – O Terreiro do Paço estava cheio, uma grande jornada! Mas temo que já não seja suficiente para defender a Revolução de Abril.

    Armando Sousa Teixeira