A MORTE DE EDUARDA EM MONSANTO
A reunião do Conselho Pedagógico do Curso de Química decorrera de forma pouco positiva. Os assuntos pendentes desde o início do semestre mantinham-se ou tinham-se agravado nas questões relacionadas com a Avaliação e sobretudo com a Reclassificação de Professores. Alguns docentes levantavam de novo a “garimpa” como nos “bons velhos tempos”, os estudantes “amouxavam” e o número de representantes eleitos no Conselho vinha a diminuir, mau sinal dos tempos.
Eduarda saiu preocupada da reunião, trocou algumas impressões com a colega da direcção associativa, também apreensiva, sobretudo porque o “Ano Zero” não arrancava devido à falta de professores e a Comissão Directiva não se mexia junto do MEIC, donde tinham sido recentemente saneados os interlocutores preferenciais.
Teria que se despachar para o regresso a casa, os transportes eram escassos e morosos. Ana ainda chamou a atenção na despedida:
– Parece que há movimentações de tropas paraquedistas a caminho de Lisboa! …
– Ah! Então a situação está a complicar-se!
No Outono de 1975 as divergências a nível político agravavam-se a cada dia (casos “República” , “Patriarcado” e “Rádio Renascença”) e o seu reflexo a nível militar ia estreitando a margem de entendimento para a continuação do processo revolucionário.
Desde a eleição em 25/4/75 para a Assembleia Constituinte, que deu a vitória ao Partido Socialista e a Mário Soares por margem inesperada (até para os próprios!), que o tom dos socialistas foi engrossando, ao mesmo tempo que se encostavam mais à direita (Comício da Fonte Luminosa em Junho).
O V Governo Provisório do general Vasco Gonçalves tomou posse no dia 7 de Agosto, sem socialistas nem sociais-democratas na sua composição. É o surgimento do “Manifesto do Grupo dos Nove”, no dia seguinte, que vem acelerar a divisão entre os “moderados” e a “esquerda militar”, ao mesmo tempo que as forças radicalizantes se juntam à volta de Otelo Saraiva de Carvalho e produzem o “Manifesto do COPCON”.
Chegados a Novembro a situação agrava-se com a concentração no dia 12/11/75 (um dia depois da declaração de independência de Angola!) de trabalhadores da Construção Civil frente ao Palácio de S.Bento, por reivindicações laborais. A direita tomada de pânico diz que é um “cerco comunista” e Mário Soares ensaia uma rocambolesca fuga a correr pelas traseiras do palácio, enquanto os trabalhadores (que ficam dois dias à espera da satisfação das reivindicações!), batem palmas aos deputados de esquerda à saída da Assembleia da República. No dia 20 de Novembro, PS, PPD e CDS aprovam a possibilidade da Assembleia Constituinte “reunir em qualquer lugar”. Freitas do Amaral contará mais tarde que o PS e o PPD pretendiam que a Constituinte passasse a “Parlamento”, com poderes legislativos e de fiscalização do executivo, atrasando a promulgação da Constituição.
Vasco Lourenço, que substituiu Otelo de Carvalho nas vésperas do 25 de Novembro no comando da Região Militar de Lisboa, referiu ter-se oposto à retirada para o Norte das forças apoiantes dos “moderados” (Comandos da Amadora, Infantaria de Mafra e Cavalaria de Santarém), no pressuposto da “esquerda militar” querer avançar.
No próprio dia 25, Mário Soares e vários dirigentes do PS partiram para o Norte apressadamente, juntando-se ao brigadeiro Pires Veloso, um militar de direita, como a antecipar uma “guerra civil” pré anunciada. Sabia-se há muito que forças reacionárias como o MDLP, oficiais direitistas e retornados reuniam em cidades do Norte, preparando-se para “vir por aí abaixo matar comunistas!”, como dizia o chefe da rede bombista, Alpoim Galvão. O seu sonho era impedir a independência de Angola!
Na manhã do dia 25/11, aviões e pilotos foram levados de Tancos para Monte Real e Cortegaça. Os paraquedistas, abandonados pelos oficiais, sob ameaça de extinção da sua Escola, saem de Tancos em desespero e ocupam o Estado-Maior da Força Aérea em Monsanto, prendendo o CEMFA. O presidente da República, general Costa Gomes, decretou o “estado de sítio” por volta das 16h30, numa altura em que a situação era confusa, procurando evitar o confronto militar extremo, tentando manter o equilíbrio entre as partes em conflito. Dirá mais tarde: “Achei de um ridículo espantoso a decisão de os principais dirigentes do PS se refugiarem no Norte”.
O desencadear das operações tinha sido preparado pelos “moderados” (Ramalho Eanes, Vasco Lourenço e Pezarat Correia), como “contra-golpe” à suposta conquista do poder pelo PCP na região de Lisboa, a que chamaram a “Comuna de Lisboa”.
Álvaro Cunhal no seu livro “A verdade e a mentira na Revolução de Abril: A contra-revolução confessa-se”, negando como princípio e como orientação expressa a participação de comunistas em golpes “putchistas”, chama a atenção para a analogia da “Comuna de Paris”, terrível e cruelmente esmagada em 1871 pelos militares franceses.
A entrada em cena do “Regimento de Comandos” chefiado por Jaime Neves, faz com que a situação se decida, os paraquedistas são neutralizados, os militares de esquerda são detidos, afastados, penalizados. Mas ainda haveria acontecimentos trágicos no dia seguinte, num confronto com a Polícia Militar (3 mortos) e num grave incidente na estrada de Monsanto.
Na manhã seguinte o retorno à escola seria com a habitual boleia da amiga já licenciada, que trabalhava num departamento do ISEL. A partir de Linda-a-Velha o caminho era feito habitualmente pela 2ª Circular, mas àquela hora já havia muito trânsito. As notícias eram escassas, trocadas com preocupação na madrugada cinzenta que ameaçava borrasca. Gente de Abril apreensiva com a evolução da situação política.
– Estamos atrasadas, vamos por Monsanto para ganhar tempo!
A seguir a uma curva apertada que precede a zona do Forte de Monsanto, onde estava instalado o Estado Maior da Força Aérea, apareceu de repente um grupo de militares a fazerem sinais com veemência. Surpreendida e assustada Maria Adelaide hesitou e abrandou, mas decidiu não parar na reacção cerebral na amígdala do hipotálamo que precede o pânico: pára ou foge!?
Não teve tempo para reflectir, quase instantaneamente ouviu-se uma rajada de espingarda automática e sem um queixume o corpo de Maria Eduarda, a seu lado, tombou para a frente atingido e sem vida. Eram tão só duas mulheres num veículo civil!
A tropa dos “Comandos” tinha saído da Amadora para tomar o quartel da Força Aérea, onde na tarde anterior a Companhia de Paraquedistas vinda de Tancos (sem se saber quem dera a ordem! …) tomara as instalações e prendera o comandante.
Não sendo a única, a Maria Eduarda, aluna do 3º ano de Química no ISEL, onde desenvolvia uma actividade progressista em prol de um ensino novo, foi a primeira vítima do levantamento contra-revolucionário nos fatídicos, angustiantes e tristes dias 25 e 26 de Novembro de 1975, que pôs cobro a 579 dias da Revolução mais bonita, esperançosa, progressista, da segunda metade do século XX, no mundo inteiro!
Na novel escola superior de engenharia, nascida com Abril, a homenagem foi adiada, mas o trabalho pela reforma democrática do ensino, posto ao serviço do povo português na senda da Revolução de Abril iria continuar!
PS: Extraído do livro “CABO RUIVO, AMOR E REVOLTA EM TEMPOS DE REVOLUÇÃO”, em publicação.
Barreiro, 25/11/25
Armando Sousa Teixeira

