Apresentação do livro de Filipe Chinita Do Tamanho das Nossas Vidas [1]
Ao falar deste alentejano, trago à emoção do registo de memória a minha falecida mãe, já nascida no Barreiro e originária da região do Concelho de Mértola, a Corte do Pinto, perto da Mina de S. Domingos, alvo de um dos maiores crimes económicos feitos por estrangeiros em Portugal, com o encerramento, abrupto, da mina de pirite e calcopirite que deu nome à terra que, se não estou em erro, chegou a ser vila, tal a importância no desenvolvimento da região, na segunda metade do século vinte, na década de sessenta.
Diz a lenda que o ditador terá exigido mais impostos aos donos, ingleses, que, em vez disso, abandonaram a Mina e, de um momento para o outro, os seus antigos trabalhadores entregues à (má) sorte, à pobreza e à emigração forçada.
Eu, que já não digo como a progenitora: “sou da Mina”, trago-a no coração, símbolo de trabalho e luta da família materna até à chegada a vários locais (Aljustrel, Faro, Barreiro, Dafundo, Évora) onde a maioria se fixou. Um dos parentes, José Vaz Rodrigues, antifascista errante e destemido, foi preso no Barreiro – o desvio de uma galinha como causa pretexto, na década de trinta.
Os seus nunca mais voltariam a vê-lo ou a saber dele e sempre o imaginaram assassinado no encarceramento, de carácter político, em Coimbra, confirmado.
Passou a malvada ditadura e, na Corte do Pinto, uma pequena via perpetua, com uma placa, o nome de um dos seus heróis, o último apelido igual a um dos meus, Rodrigues.
Pessoa do tempo do avô materno acerca de quem, um dia destes, escrevi:
“Lembro um querido familiar que, infelizmente, nunca conheci: Manuel Horta Rodrigues ou Manuel Horta, avô materno, natural da Corte do Pinto, no Concelho de Mértola que, como quase todos os homens da região, o serviço militar concluído, mulher e um filho, foi procurar trabalho à Mina de S. Domingos, a cerca de três quilómetros da sua aldeia, há mais de um século.
Face a ter sido tropa, atribuíram-lhe a actividade de polícia (ingleses, senhores daquela região, tão rica em minério, davam-se ao luxo de uma força privada).
Em aceitação aparente da tarefa, Manuel Horta, em alentejano silêncio, pegou na mulher e no catraio, deixou as botas à porta do quartel e veio, não sei como, para o Barreiro, onde teve muito tempo para alargar a família, ser fogueiro e maquinista brilhante e, muitos anos depois, Subchefe de Depósito, com fugas aos malandros que tudo viam e ouviam contra o ditador e ainda o puseram, homem maduro, na prisão do Aljube, com a ‘delicadeza’ característica”. [2]
É esse Alentejo, imorredouro, na paisagem, natural e construída, no clima, na gastronomia, nos afectos, que reencontro em Filipe Chinita que, ido da sua terra, o Escoural, na segunda metade dos anos setenta, para se formar na União Soviética, se nos oferece na construção poética de que também somos protagonistas.
Porque, cidadãos, porque amantes do Trabalho, das Artes, do Lazer, da Qualidade de Vida, temos a expectativa de um melhor amanhã, como os sujeitos poéticos exprimem na obra.
Do Tamanho das Nossa Vidas é burilado em dois eus, um jovem e uma mulher, complementados pelo aspecto formal do(s) texto(s)/ poema(s), num cruzamento entre o lírico e o épico, num tecido que embeleza a obra, através de negro e itálico que se entrelaçam, cantam e fulgem, o negro para “ele”, o itálico para a figura feminina:
“16.11.1976
não foram de pensar
as horas mortas
de ontem
não foram rever
nem
procurar
antes
estar
ser
vibrar
doer
em cada fase
do labirinto
que
fomos
que o meu
corpo é
para
ti
as armas
que me ensinaste
serão companheiras
para não te perder
e na vida
e na luta
vencer
ter-te-ei
a
pergunta
exacta
da
solidão
em que
me
transporto” [3]
Os sujeitos de enunciação, feminino e masculino, ligados entre si e fundidos no povo, no legítimo e belo acto de aspirar a ser melhor: o Alentejo-Mãe dele, a União Soviética da Esperança, a Universidade de Moscovo, no 1º trimestre do ano citado – o estudo, o aperfeiçoamento, a simbologia de Lénine, da Praça Vermelha, do 7 de Novembro (que Eisenstein imortalizou e nos doou).
Apesar dos desvios do aparelho partidário, apesar do estalinismo, apesar do cerceamento das liberdades individuais, tarde terminado, apesar de, de e de, a União Soviética subsiste várias décadas.
Mesmo com a produtividade, virada para o utilitário, o educativo, a formação, o cultural, Moscovo caiu, a União Soviética caiu.
De facto, a economia socialista não podia competir com a feérie do capitalismo, morte de tantos seres, sanguessuga, glutona, dos cifrões, vigarista e insaciável, “trompe l’oeil” que serve alguns e se serve de tantos milhões de pessoas, quais objectos de prazer. Obsceno.
Capitalismo que, sem alternativa e cada vez mais selvagem, vai caindo, também.
Em tragédia para os povos.
Mas os seres poéticos do livro não o previam e puderam inebriar-se, ele, bastante jovem, ela, mais madura, nos ideais e alegrias de igualitarismo da Revolução de Outubro:
O que acabo de dizer é aqui ilustrado pelo poema de “07.11.1976
praça
vermelha
vermelha
de
gente
da
cor
do
sangue
vermelha
vermelha
de
alegria
liberta
vermelha
de
ternura
no beijo
que te
dei
vermelha
de
beleza
nos painéis
heróicos
vermelha
na pedra
do
mausoléu
de
lénine
beijo
a
noite
7 de Novembro
praça vermelha
Frente ao mausoléu
de lénine
(a) serena
firmeza
mão operária
na bandeira
que
avança
(um) sabor
a pão
nuns olhos
de
camponesa
(a) busca
da verdade
na fronte
dos que
pensam
(e)
agem
ruas
de Moscovo
a multidão
que
desfila
a praça
vermelha
em
festa
a guarda
vermelha
que
a guarda
o mausoléu
de lénine
que
a define
são basílio
que
a eterniza
os painéis
as luzes
e as bandeiras
e o sorriso
da criança no regresso
e o nosso amor
por ela
poema
à
revolução” [4]
Socialismo: para um dia o refazermos. Que será bem melhor, e bem melhores os nossos ideais, as nossas práticas.
Para voltarmos à pureza original, à caridade, à compaixão, ao trabalho para um desígnio colectivo, e, finalmente, à solidariedade.
Para que o Mundo, de facto, seja mais acolhedor e apetecível. Mais adequado à Humanidade. Dentro de nós e dos nossos desejos. Fora de nós, também com eles.
Com “amor e vontade de pedra” por alguém, quando sonhos pessoais parecem desfazer-se, como diz o ser poético/ele:
“25.12.76
foi a tarde
quem escreveu este desencontro
e deixou na mão
da tristeza
o silêncio
de estar
só
silenciosamente
fui-me
pisei
a
neve
e na multidão
que inflexível continua
ninguém descobre
que procuro
uma chama
no frio
da
rua
entre
a dureza do rosto
e a firmeza do passo
reencontrarei
a energia
que levará o relógio
do tempo
ao espaço
de um novo
encontro
o bar
num único anseio
o de chegar
(e) partir
afinal
o desespero
de te
encontrar
saí
correndo
nas
lágrimas
retidas
tarde de dor
em que até o espaço
das quatro paredes do quarto
que fiz meu
me foi
negado
tarde de dor
em que nem um só sorriso
– teu –
se abriu
em mim
no pino da tristeza
rasguei-me
na tarde
porque
tocam cordas – ao lado –
se quero um silêncio
de morte
as mãos
que
nos
desenham
os olhos
que
nos
festejam
a ternura
incontível
que
nos
define
palavras
mansas
neste
silêncio
de
paz
e os anéis
de vida
espalhados
pelo
quarto
neste
querer
saber
e
fazer
pétalas
de
poesia
este
respirar
livre(s)
amor
e
vontade
de
pedra” [5]
Homem e Mulher, Homens e Mulheres que se reencontrarão.
Também neste e por este livro, urdidura, perfeita, do significante e da semântica, síntese, completa, da união de sintagmas e paradigmas,
“do tamanho das nossa vidas”.
Que, um dia, recuperarão Abril no nosso País.
E Moscovo na Terra.
Obrigada, Filipe Chinita.
Obrigada, Cooperativa Cultural Popular Barreirense.
Obrigada, Câmara Municipal do Barreiro.
Obrigada a todos vós.
Manuela Fonseca
20.04.201
[1] Este é o 3.º de um conjunto, já editado. Lisboa, Edições Colibri, 199 [+1] pp., onde o Homem, a ontologia, a sua identidade se fazem em crescendo, com e pelos outros.
[2] In http://spglsuperior.wordpress.com/2012/03/28/o-avo-manuel-horta-a-policia-o-pau-ao-gato/, consultado em 29/3/2012.
[3] Op. cit., pp.124-125.
[4] Idem, pp. 93-95.
[5] Idem, pp. 176-179.
4 Responses to "Apresentação do livro de Filipe Chinita “Do Tamanho das Nossas Vidas”"
You must be logged in to post a comment Login