Sonhos com Pé – Por: Manuela Fonseca

Sonhos com Pé – Por: Manuela Fonseca

Nota prévia: amiga de Mariana e Manuel Balseiro há quatro décadas, foi com muita alegria que os vi receber, recentemente, a Condecoração “Barreiro Reconhecido – Educação” e fiquei feliz por essa homenagem da Autarquia pela qual cumprimento todos os agraciados, nas áreas em que servem de exemplo a cada um de nós.

Passo a referir-me a Mariana, ceramista galardoada, escritora que faz destas duas Artes a sua forma de nos educar, sob o ponto de vista estético; se os objectos nos trazem um mundo onírico, que me lembram o universo de Dali, que dizer desses dois livros que escreveu, um de contos, infelizmente inédito, com Prefácio do saudoso Bernardo Santareno, obra assinada como Mariana Vasques, Horizonte Raso e o outro, a que a seguir me refiro, intitulado Sonhos com Pé (Lisboa. [Sem indicação de Editora], 2004, 137 pp..)? Sob o pseudónimo de Mariana Monte Real.

Muito bonita a capa de Gonçalo Ribeiro, de predomínio azul, motivos a negro sobre a primeira cor, os mais evidentes na figuração de um pé em três posições, uma criança, a branco – a de que falará a obra, a própria narradora, junto de um pedaço, também negro, a sua velha e amiga árvore, na terra natal, Mina de S. Domingos (onde a minha família materna conheceu a pequena Mariana e pela qual tantas afinidades criei, ambas mulheres, no Barreiro).

Profundamente ligada à transcendência, dedica o livro, na página [5]:

A meus pais que me esperam

Com amor

Pouco depois: “À minha terra natal, a Mina de S. Domingos, levo o meu protesto e digo-lhe que nunca foi aldeia, pois nasceu vila. Agora, roubada nas suas riquezas, podem, sim, chamar-lhe aldeia (…). E às gerações que me sucedem, lembro que nas margens do lago por nós amado, podem, ao entardecer, imbuir-se de alento, alívio na luta e de paz, paz presente em mim, nesta alegria de crer!” (P.7.)

As unidades narrativas de espaço e tempo fundem-se, na quietude do “lago”, a Tapada Grande, um dos cenários naturais de sossego maior neste País.

As saudades dos progenitores, materializadas na mãe: “Minha mãe, doce memória! Não quero trazer-te queixumes, quero, sim, cantar a alegria de ter nascido de ti, mulher bíblica, arrancada às Escrituras.” (P. 9.)

Na primeira parte, o verbo, na forma negativa, dá-lhe coragem; na segunda, a afirmação é reiterada pela perifrástica, corroborada pelo advérbio “sim”, na decisão irreversível que toma: falar da mãe, dos seus, de si.

Surge algo curioso: as frases sucedem-se, despertam imagens, “a avivar recordações.” (P.15.) Surgidas, misteriosamente, para deleite da personagem-narradora que conta, um pouco antes, como palavras e outros sinais que as completam se abeiraram dela. (Cf. pp. 11-13.)

Isso leva a criança-Mariana aos caminhos da sabedoria que lembra através de um livro: “a Bíblia Sagrada, a Palavra de Deus, que sustenta o mundo.” (P. 18.)

Numa Língua Portuguesa quase sempre escorreita, a adjectivação tem papel preponderante na expressividade, própria para o destinatário (o leitor virtual), aderir à mensagem e, quiçá, a continuá-la.

Cria algo que a acompanha, até adulta, que denomina “No Jardim dos meus contos” (pp. 21-41), onde introduz outro interlocutor na obra, Naroio, e a narradora se designa a si própria por Nicha – nomes com uma conotação familiar que nos aproxima deles.

“ – Na verdade nem tu és Adão nem eu sou Eva, mas este jardim foi criado, um dia, para nós.

– Quem sabe, Nicha!

– Que bom estarmos aqui… É tão calmo, tão recolhido…

– É um belo cantinho para me falares dos teus sonhos, quase sempre voadores…” (P. 21).

O diálogo prossegue, feliz, entusiasta, apelativo, quase surrealista:

“ – Vamos para o tear?

– O tear, qual?

– O maior, Nicha! Colcha, manta ou toalha?

– Olha, colcha, toalha e manta!

(…)

– Então, Nicha, em pinceladas de mar e oiro, que um dia será restolho, de límpido azul sempre coberto. Ondas de azul e oiro, as cores da nossa terra do Sul.” (P. 23.)

Entrelaçar o passado: “Minha pequena amiga, ouvi eu da oliveira, não estejas triste.” (P. 29.)

Animizada, a oliveira passa a ser “pessoa de papel”, personagem que acolhe e dialoga com Mariana. E, porque é velha, ensina-lhe coisas diversas, entre as quais História Local: “Esta região era quase deserta quando a tua terra começou a formar-se. Então foi um grande alvoroço, quando chegou uma multidão munida de pás e picaretas (…) para os homens morenos e rudes do Alentejo.” (P. 33.)

E a árvore descreve, com precisão, gente diferente que acompanhou os alentejanos àquele lugar: “E eram já muito avançados em maquinaria e engenharia esses outros, altos, loiros de olhos azuis que aqui chegaram, os ingleses…” (Idem.)

Par os rebentamentos de minério fazia falta pólvora que, para a ditadura, ignorante e coerentemente inimiga do povo, poderia ser um perigo que tornava suspeito quem a tivesse, como a oliveira conta à pequena:

“aconteceu  que há relativamente pouco tempo houve em Lisboa um atentado à bomba que visava uma das figuras políticas mias relevantes do país. As averiguações da (…) Secreta encontraram pistas que conduziram até aqui, ao fornecedor de pólvora. (P. 37.)

“Claro que neste caso a aplicação era outra. Tratava-se de rebentar uma rocha que estava a impedir o avanço da abertura de um poço.” (P. 38.) Rocha que quem nada sabia do mundo do trabalho não via nem mandava ver e, ao invés, fazia prender quem tinha material para a destruir – era o mais fácil e proveitoso para os cobardes, detentores do poder: o guardador do explosivo teve pena severa.

Como no Barreiro, situação que a garota já conhecia:

“Sim, como no Barreiro, também por aqui se passam coisas graves, mas que eu não entendo muito bem…” (P. 40.)

“Sabes que vão percorrer dezassete quilómetros até ao porto fluvial do Pomarão, no Guadiana, onde o minério é despejado em grandes barcos que vêm busca-lo para ser tratado na CUF?” (Idem.)

A conjugação perifrástica utilizada em “vão percorrer” transmite-nos, em sons onomatopaicos, o movimento dos comboios entre a Mina de S. Domingos e a aldeia à beira do Guadiana.

E ninguém ilude a criança quanto à exploração do Homem pelo homúnculo ganancioso: “Sei que a empresa [a Mason and Barry] tem lucros fabulosos e paga salários de miséria.” (P. 41.)

A centenária árvore personificada continua a educação cívica da menina: “Como já te disse, estas habitações foram pensadas para os mineiros, sem terem em consideração a família, quantas vezes numerosa (…) Sabemos que o salário do mineiro é salário de miséria.” (P. 43.)

A história volta ao presente do casal:

“ – É bom recordar a nossa meninice. (…) No meu caso não tinha mesmo com quem brincar. (p. 51.)

(…)

– Ó Naroio, como é que tu imaginavas o céu e a terra? Conta-me lá outra vez… (Idem.)

– Isso era o forte do meu imaginário… Arquitectava eu que a terra era uma imensa plataforma circular, circundada por um muro baixo, a altura suficiente para que as crianças não caíssem lá para baixo, mas que pudessem espreitar. E fazia um esforço imenso para imaginar o infinito.” (Pp. 51-52.)

E assim, dois actores, privados do sentido da visão, esclarecem o narratário acerca da forma, diferente e bela, do encontro com o Planeta.

E, um pouco mais à frente, os problemas e vícios das pessoas sentidos por Nicha:

“ – Todos os conflitos da mente, todos os conflitos do coração com os seus crimes (…) sobem e condensam-se. Parecem tomar corpo em conjunto de ideias macabras, tóxicos da alma…

– Mas…, minha Nicha, não aparece um raio de luz no meio das trevas?

– Sim, já o ia dizer. A luz do Bem está presente, mas sente-se que há uma força raivosa, ainda que inglória, que se levanta e ruge contra Ele.” (P. 55.)

 Regressa a Mina de S. Domingos, local, primeiro, do encontro da Estética e da Ciência pela outrora menina: “Quando de manhã minha mãe me despertava para ir para a escola, eu lembrava-me que deixara a terra às escuras na noite anterior. No momento de acordar já o sol brilhava no céu.” (P. 58.)

E, de novo, a espiritualidade ligada à Igreja Católica, o Movimento Carismático abordado, durante um jantar entre amigos, por um deles, João: “A verdade é que o Renovamento carismático surge no seio da Igreja Católica como expressão do espírito conciliar. Ele corresponde, porque responde (…) a uma efusão profundamente renovadora do Espírito Santo. Estamos em meados da década de sessenta.” (P. 68.)

E, parece, a narradora passa, também, a crente nas teorias de S. Francisco de Assis, para um diálogo nocturno, irresistível, com um gato: “Bom, (…) se eu fosse tua dona punha-te o nome de Romeu (…). A história é bonita e havias de ver como te ficava a matar… Mas vejo que te agradou…

Agradou, sim. O que tu não sabes é que eu já conheço a história. Vi o filme ao colo da avó. Ah, ah, ah, ah…” (P. 77.)

“Romeu estava sentado sobre o teclado (…). Agora sim, oiço a campainha da porta que ressoa alegremente. E foi então que me endireitei, gemendo um pouco pela posição incómoda em que tinha adormecido. (P. 91.)

Volta ao espaço-Mina de S. Domingos. Num registo cinematográfico, excerto de um capítulo que é “Como num ecrã de recordações” (p. 93), “Memórias em tons de Sul”.

Ai, havia garotos portugueses de condição social mais elevada em convívio com os britânicos, e Mariana junto deles, quase posta à margem, salva pelas palavras, sábias, igualitárias de Mikey: “Ela pode brincar! Eu gosto de tu” (…) Ela ter casaco igual ao nosso…” (P. 101.) Bem diferente, aliás: “O tecido e a cor eram, sim, muito semelhantes, mas eu não lhes disse que o meu casaco era um dólman do meu pai, virado porque roçara.” (Pp. 101-102.)

E pouco depois: “Três bancos corridos, um pequeno estrado e nessa tarde de domingo tínhamos concerto. Mestre Lopes, com vistosa farda, batuta em riste, regia. (…) Os músicos, com seus metais reluzentes, seguiam atentamente pauta e maestro. Como borboletas atraídas pela luz, jovens e crianças volteavam, saíam por uma alameda e ressurgiam por outra. O corte de ténis também se animava com a presença dos ingleses e era sempre notável um jovem casal, esplêndido de beleza e de agilidade.” (P. 102.)

Chega um momento de belo horrível, com se víssemos e vivêssemos um filme – de noite, junto ao rio, Mariana e um grupo de amigos são apanhados por uma trovoada medonha em relação à qual os adjectivos dão ênfase ao terror: “Em poucas horas, o meigo e doce Guadiana transformara-se num caudaloso rio turvo e medonho. Era agora um caudal de água lamacenta, revolta e tumultuosa. Na corrente rápida passavam objectos estranhos (…). Impressionante, um cavalo, seguido a pouca distância por ovelhas, toros gigantescos de madeiras, árvores arrancadas pela raiz, monturos de lenha. Grandes abóboras, vegetação hortícola com seus frutos. Era um mar de destroços.” (P. 108.)

No fim da aventura, ela e os amigos salvos da tempestade com dificuldade: “Como se estivesse a reviver um filme, os meus olhos voltavam-se de margem para margem (…) até ao negro das grutas.” (P. 112.)

Livro-filme de vida, a narradora sempre a inovar, “Lisboa vista da Esperança” a premiar as mãos, as maravilhosas mãos de Mariana, que tudo sabem, vêem e transmitem. Mariana que recebe prémio e amor:

“ – Um beijo de parabéns, Nicha… Sabes que todos os matutinos e revistas trazem a tua fotografia a trabalhar o barro e com grande referência ao teu talento? Uma autêntica revelação!

(…)

– Pronto, fui promovida a cartaz e o cartão de visita da Fundação e disto não passarei, vais ver…

– Sim, minha Nicha, não tenhas ilusões… Neste país o suporte do talento, e quantas vezes o seu criador, é o dinheiro e a cunha.

– Assim é de facto. Mas hoje estamos particularmente felizes.” (Pp. 115- 116.)

Portugal e o atraso no desenvolvimento: a “cunha” em vez do mérito, mas Mariana premiada, devido, sem discussão, a este. Distinguida por uma Fundação criada, em Portugal, por estrangeiros.

O casal evoca a falta de apoio às pessoas cegas e espera dias melhores:

“ – A mendicidade, a música como último recurso pertencerão ao passado.

– E que luta, Naroio, tiveram que travar com o governo de Salazar para conseguirem o que conseguiram!… É mais que justo que o seu nome fique perpetuado na Fundação Raquel e Martin Shain.

– Sim Nicha. A Fundação representa um farol de esperança para os cegos.” (P. 117)

(Uma importante instituição, organizada por solidárias e sabedoras pessoas estrangeiras, no maior conforto a portugueses que dele necessitam. O que as ditaduras fazem de mal às populações: parecem acabadas mas ainda não, no desgaste, diário, contra a falta de condições deixadas, décadas depois.)

Nicha e Naroio continuam, entre o terráqueo e o maravilhoso, a esperança e o humor:

“ – Imagina tu que quando acordei, ressoava dentro de mim, um cântico em tom menor, muito belo na sua singeleza. Escutámo-lo pela primeira vez em S. Vicente de Fora, acompanhado por harpa, lembras-te?

Com isto tudo, que horas serão, Naroio?

– Digo-te já: olha, passa um pouco dos quarenta anos!” (Pp. 135-136.)

(Escreveste, Mariana, sob a forma de Prefácio, no início do livro, Carta sem Endereço – pp. 9-11. Dedicada a tua Mãe. Tal Carta / Este Livro pode / deve seguir para a tua mãe-terra. Um orgulho para os naturais, habitantes, originários e amigos da Mina de S. Domingos.

O Centro de Documentação da Casa do Mineiro, na Fundação Serrão Martins e a nossa Mina ficarão mais ricos. Também com a tua Cerâmica.

Contribuirás, com a própria Obra que tens criado, para o ressurgimento do Interior deste Portugal, País entregue a uma espécie de alienígenas das coisas estúpidas, coitada da população.)

Manuela Fonseca

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