Cálice de Mágoa [1] de Rui Costa
Preâmbulo
Começo por esclarecer que o citado poeta é meu familiar, o que, suponho, não me coarcta a capacidade crítica, tantos os anos de leitura, análise e interpretação dos mais variados autores e géneros que têm enformado a minha vida.
O Autor e a Obra
Há menos de um ano, Cálice de Mágoa surgiu, através da actualizada World Art, no número XIII (sic) da Colecção “Friends”. Se apliquei o adjectivo àquela é pela virtude da publicação, que permite que o livro esteja on line e seja encomendado em suporte de papel.
Rui Costa avançou para um conjunto de poemas, na minha visão, um só tecido literário, com a rara qualidade de poder ser lido nos dois sentidos, moldado em angústia(s), dissabor(es), agressividade, encontros e afastamentos consigo e com os outros.
Procura a Liberdade, às vezes encontrada num copo/num cálice, no desembocar de inscrição ontológica, que fazem com que seja e cresça, o que, na Dedicatória, anuncia e começa a desvendar-se/-nos:
“ (…) Às gentes hipócritas e mesquinhas; Às gentes interesseiras e sem decisão; Às gentes da ‘palmadinha’ nas costas, Às que anuem a tudo e a todos (…).
À dor e à mágoa.
E ao que eu quiser.”
Os primeiros anos, a comunicação e a Liberdade – parte da Vida, aprendizagem desta e nesta. Aprendizagem do Ser-se Homem e Cidadão, numa criança que pode ser a recordação da própria infância, ou, quiçá, a descoberta no filho a quem também dedica a Obra:
“Brinca, miúdo, brinca com as palavras
Brinca com o que perdes ou ganhas (…)
(…)
Mas brinca, miúdo, brinca livremente,
Brinca com as palavras, como o tens feito desde sempre” (“Brinca, miúdo, brinca”, p. 11).
Texto(s) de paradoxos, urdido(s) numa dualidade dolorosa, desgastante, quase delirante, como o próprio ser poético proclama:
“ (…)
É num gritar surdo que te chamo,
Ó querer que nada quero!
Quero o mundo só para mim,
Para to dar todo, loucura,
Até me esvaziar do que sinto.
Quero perder-me no labirinto
Que é um amar sem explicação
Sem amor de amar e ter.” (Vertiginosamente, p. 30.)
Amar – em perífrase construída pelo entrelaçar de dever e ser, sinestesias olfactivas e de sabores que, unidas, hiperbolizam-no, até à junção erótica de dois entes:
“O teu amar
Deve saber a provação.
A carência deve cheirar
De entrega deve queimar,
Deve prender sem condição.
(…)
O teu amar
Deve saber ao sonhar,
Ao que não nos deixa dormir
Mesmo que no dia a seguir
Nos volte a despertar.”
(O teu Amar, pp. 31-32.)
Hipérbole de novo trabalhada na contestação daquilo de que discorda, o incomoda e fere, na luta entre sentimentos e racionalidade:
“ (…)
Oiço queixumes
E mais alguns azedumes,
De vítimas por vocação.
Oiço silêncios
Que me ferem, intensos,
Por não terem razão.
(…)
(Silêncios, p. 39.)
Cultivador estilístico, a metáfora e a imagem enobrecem o livro:
“Esta noite
Cortei a lua cheia ao meio
E em metade do seu luar me escondi.
(…)
Esta noite
Quis que o céu enegrecesse,
Que em vez de estrelas, chovesse,
Que ninguém saísse assim.
Para que com isso eu pudesse
Perder a luz que és para mim.
(…)
(“Esta Noite”, p. 51.)
O super-realismo/surrealismo libertário encontra um dos seus opostos, o salazarismo, no amor, personificado, onírico, perseguido, desprezado:
“O amor ficou à porta.
Entrou, com postura,
A gabardina do tempo da ditadura,
Até o chapéu.
Lá fora, debaixo do céu,
Que tinha caído sobre fraca figura,
Jazia em pranto e em dor
O tal renegado do amor,
Vítima de tanta fartura.
(…)
Estava frio. Lá dentro não.
A gabardina num repente
Estava no chão.
E o amor, esse, na rua batia o dente
Como se o amor da gente
Fosse uma vida de cão.”
(“O Amor ficou à Porta,” p. 62.)
O poeta, em interrogação (quase) retórica à noite, animizada. Que assume, qual autor barroco, o ser/o parecer, em policromia de desalento a que o álcool não é alheio:
“ (…)
Sabias, noite,
As vezes que te chorei,
Eu que desde sempre desejei
A felicidade?
Sabias das voltas pela cidade,
Ou direito à serra,
Muitas vezes com o álcool por companhia,
O conduzir em correria,
Numa violenta guerra
Entre uma lágrima e um morder de lamento?
(…)
Sabes a cor do sentimento?
É um arco-íris aos quadrados.
E em cada um dos seus lados,
Tinta seca e velha descola do cimento.
(…)
(Sabias, noite? pp. 75-76.)
Os dias, irrepetíveis e repetitivos, os dias, passados pelo ente poético só ou não, o espírito num enigma. Dias enumerados:
“Os dias são como são.
Uns, são plenos de magia
Tendo o amor por companhia,
Outros são de solidão
(e às vezes nem é preciso estar-se só).
Os dias são como são,
Hoje sentimos alegria
Amanhã metemos dó
(…)
(“Os dias são como são”, pp. 83-84).
Recomendação e conclusões
Este livro solicita outro a Rui Costa, tão profundo e pleno de procura e contrastes, que continue a tornar-nos atónitos.
E a que não seja alheia uma revisão.
E ao destinatário: ser lido devagar, no silêncio da Poesia. Degustado, talvez, na companhia de um cálice sem mágoa.
Manuela Fonseca
[1] Rui Costa, Cálice de Mágoa. S/l. “World Art”, Col. “World Art Friends” (13), 1.ª Ed. 2012, 87 [+ 1] pp..
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