Jorge Custódio | Professor de Arqueologia Industrial, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
O abandono do complexo ferroviário do Barreiro significa não proteger uma herança cultural oitocentista., desde sempre relevante na História e progresso do país.
A Comunicação Social portuguesa e estrangeira tem vindo a interessar-se, ultimamente, por alguns dos principais problemas da preservação, salvaguarda e conservação do Património dos caminhos-de-ferro portugueses.
O caso do abandono do complexo ferroviário do Barreiro veio a lume porque um grupo de cidadãos criou o Movimento Cívico para a Salvaguarda do Património Ferroviário naquela cidade. Este Movimento tem como objectivo principal sensibilizar e intervir na protecção da herança cultural ferroviária, ameaçada desde 1998, com o encerramento da Estação Fluvial oitocentista e cuja espiral de degradação e desinteresse público culmina na actual desocupação do bairro de 23 moradias operárias unifamiliares, datado de 1933-1935.
O complexo ferroviário do Barreiro é um conjunto de interesse cultural, que tanto os Comboios de Portugal(CP), como a Rede Ferroviária Nacional (REFER), como ainda a Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário (EMEFE) retiraram do seu horizonte de interesses de exploração, muito embora reconheçam o valor histórico, sem as imediatas consequências quanto à valorização do respectivo Património.
O desinvestimento no Barreiro nasceu com a travessia ferroviária do Tejo, a electrificação da rede ferroviária entre Pinhal Novo e Faro,o encerramento das oficinas da tracção a diesel e o histórico imbróglio do TGV, cujo “fantasma” pesou e ainda pesa sobre a Indústria, a Economia e a Sociedade barreirenses. Durante os últimos catorze anos (1998-2012), que medidas foram tomadas para a salvaguarda dos valores da identidade e da memória do Barreiro ferroviário? Meia dúzia de intenções e a participação num aniversário centenário. Quase nada!
Na História dos caminhos-de-ferro portugueses há um inegável paralelismo na construção da rede ferroviária tanto do Leste/Norte, como do Sul e Sueste. Três anos medeiam a chegada ao Carregado (1856) e a inauguração da Linha do Sul, no Barreiro (1859), ambas por D. Pedro V. Lisboa e Barreiro partilham a epopeia da construção da rede acelerada de transportes em Portugal e, como é lógico, a modernização do país.
A inauguração oficial da Linha do Sul (1859), a construção da primeira estação de caminhos-de-ferro (1859), o início da actividade comercial (1861), as decisões que marcaram a construção da rede do Sul e Sueste (1860-1864) foram factores da moderna identidade industrial do Barreiro, antes mesmo do estabelecimento da CUF (1908), influindo na dinâmica de uma região e na construção do mercado nacional. Estes aspectos valorizaram historicamente o Património ferroviário do Barreiro como estação terminal e ainda como estação fluvial, dado que tardou a construção da travessia ferroviária do Tejo, obrigando os passageiros e as mercadorias a percorrem o Tejo e o Mar da Palha para circularem para os seus diferentes destinos. As transformações ocorridas durante 150 anos transformaram o Barreiro numa cidade ferroviária e, durante esse período, definiu-se o seu Património como “domínio público ferroviário”, enquanto bens de valor económico e social ao serviço da população portuguesa. O reconhecimento destes bens em função do seu valor cultural é, todavia, mais recente. A discussão da localização futura do Museu Ferroviário e a luta pela sua criação no Barreiro (1970-1990), o conflito gerado pela decisão da instalação do museu no Entroncamento (1991), o processo de desindustrialização do Barreiro (visível desde 1980), a valorização cultural e social do Património Industrial (1977-1985) permitiram a consciencialização dos principais valores do Património ferroviário, não apenas como vestígios materiais da histórica barreirense, mas do próprio país. Esta consciência assume a forma de movimento cívico no decurso dos últimos meses, embora estivesse latente há já alguns anos. A celebração dos 150 Anos dos Caminhos de Ferro do Barreiro contribuiu para a afirmação de uma vontade social e dos contornos da luta cultural para a inversão da situação.
…o processo de desindustrialização do Barreiro (visível desde 1980), a valorização cultural e social do Património Industrial (1977-1985) permitiram a consciencialização dos principais valores do Património ferroviário, não apenas como vestígios materiais da histórica barreirense, mas do próprio país.
Todavia, por razões de política ferroviária nacional e europeia, na sequência das mudanças económicas e financeiras a nível internacional, acentuaram-se, nos últimos anos, outras tendências que assaltaram a estrutura tradicional do sistema ferroviário português, sistema que plasmou a identidade ferroviária do Barreiro num século e meio (1859-2009). O desenvolvimento da travessia da Ponte 25 de Abril e a construção de um novo terminal de carreiras fluviais iniciaram um processo de desindustrialização ferroviária, o que no contexto cultural actual significa o abandono da sua herança social ferroviária e dos valores inerentes ao Património dos caminhos-de-ferro
O abandono é apontado como a atitude por excelência deste caso. Mas observando o complexo ferroviário do Barreiro à luz da teoria e da ética patrimonial, não se trata tão-somente de abandono, mas também de vandalismo, cometido em diferentes momentos da História recente, com o beneplácito das empresas (com diferente expressão na imprensa social), de degradação consciente e inconsciente de bens de domínio público, de sucessivos atrasos na reorientação das políticas ferroviárias de protecção e salvaguarda deste Património. Aliás, o modelo histórico da atitude de abandono das antigas estruturas ferroviárias e de Material circulante anda associado ao modelo de desinvestimento na rede ferroviária portuguesa. Em Portugal tornou-se proverbial e sem retorno, embora as obrigações sociais e culturais das empresas ferroviárias não possam ser aligeiradas, dado que trabalham tanto por via das infra-estruturas da via e obra, como do material circulante com bens do domínio público ferroviário, dos quais têm que dar conta a todo o país. Na realidade, o que acontece é que à medida que encerram linhas ferroviárias ficam infra-estruturas ao abandono, alienam-se outras sem uma análise do seu valor cultural e das possíveis vantagens económicas, sociais e culturais no futuro, numa atitude de desinteresse que faz parte integrante das políticas patrimoniais das empresas.
A inexistência de um sistema integrado de protecção dos bens culturais ferroviários corre a par da ausência de políticas patrimoniais para a sua salvaguarda e conservação em Portugal. A REFER procurou recentemente inverter esta situação estabelecendo um protocolo com o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana – talvez como reacção ao modelo anterior desenvolvido com a criação da INVESFER. O problema radicava na alienação do Património de domínio público em património privado das empresas, fazendo perpetuar situações de negócios imobiliários que se tornaram frequentes depois de 1997.
…o que acontece é que à medida que encerram linhas ferroviárias ficam infra-estruturas ao abandono, alienam–se outras sem uma análise do seu valor cultural e das possíveis vantagens económicas, sociais e culturais no futuro, numa atitude de desinteresse que faz parte integrante das políticas patrimoniais das empresas.
Por sua vez, a Fundação Museu Nacional Ferroviário, enrodilhada nas suas teias políticas e burocráticas, não encontrou soluções que garantissem a inteligência da transformação dos bens do Barreiro num Núcleo do Museu Nacional do Ferroviário, uma solução mais eficaz para uma reorientação ou reorganização do conceito de Museu Ferroviário português e da consequente salvaguarda e conservação do Património imóvel e do material circulante do Barreiro, de interesse cultural (mais apostado na tracção a diesel). A FMNF nem vislumbrou ainda que só pode ser um museu de excelência quando definir uma política consequente para o Património ferroviário nacional, como aliás se encontra expresso nos seus Estatutos (2007).
O deficit de intervenção do poder local no processo de valorização do Património industrial do município é outro dos problemas. Não é por acaso que o movimento cívico chama a atenção para as responsabilidades da autarquia (vereação camarária e assembleia municipal) nesta matéria. Há anos que técnicos da Câmara Municipal do Barreiro e diversos colaboradores têm chamado a atenção para a ausência de uma política patrimonial do município, requerendo não só “palavras”, mas actos, como a inscrição no Plano Director Municipal dos bens industriais e ferroviários do Barreiro e a própria classificação dos “monumentos” da História ferroviária, como são as Oficinas Gerais da CP (com adaptação da mais antiga estação terminal ferroviária do país a espaço oficinal, em 1884), a Estação Fluvial Ferroviária (1884), os bairros sociais da CP e a Rotunda das Locomotivas (construídas em 1884 e remodeladas em 1960).
É necessário ter presente que o conceito de Património Ferroviário evoluiu nos últimos 15 anos para se poder entender o que estamos a dizer. Nos últimos anos, assistiu-se a uma mudança de atitude internacional em relação à salvaguarda e conservação do Património Ferroviário. Uma autêntica mudança de paradigma, que não privilegia apenas o Património arquitectónico e o material circulante abatido, mas acima de tudo o próprio valor económico do Património histórico ferroviário, em termos de Turismo cultural e de conservação e restauro do material circulante. Não é por acaso que a Grã-Bretanha está na linha da frente, não apenas com um dos mais importantes museus do mundo, mas porque se restaurou uma locomotiva a vapor por ano, porque a burocracia não dificulta a circulação de comboios históricos, como acontece em Portugal. Estes factos dão razão às diferentes cláusulas da Carta de Riga (2005) que passou a ser o instrumento de aferição das políticas de valorização e conservação do Património Ferroviário dos diferentes países. Sendo a cultura ferroviária de carácter universal, face ao cariz industrial dos bens ferroviários, um país que não proteja o seu Património Ferroviário atrasa-se na valorização dos seus bens culturais. Mas aqui também o problema não é apenas das empresas ferroviárias, nem da Fundação é um problema da Direcção-Geral do Património Cultural, que não tem qualquer política consequente para o Património Industrial, nem Ferroviário, vivendo ainda da herança que recebeu da 1ª República, do Estado Novo e do pós 25 de Abril (resultados da política patrimonial realizada pelos institutos do Património e DGEMN dos anos 1980 a 2007).
Texto publicado na revista P&C N°S3 | Julho > Dezembro 2012
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