Vou narrar o que me lembro daquele dia.
E, se bem me lembro, a manhã estava radiosa e luminosa (pelo menos essa era a minha vontade). Àquela hora já o sol era escaldante… mas eu tinha prometido… e apanhei o comboio na Estação do Barreiro.
A carruagem onde tomei assento, embora não fosse nova, estava limpa e era arejada.
O comboio partiu e eu ia sozinho na carruagem.
O meu pensamento ganhou asas e, até ao Lavradio, vi através da janela, aquela grande alameda arborizada, com equipamento urbano, serviços e restauração.
– Tanta gente a passear e eu aqui tão sozinho a pensar. Olha a Rotunda e o Armazém Regional. Que lindos ficaram com a sua recuperação! Tenho que os visitar pois ainda não sei o que albergam.
O comboio abranda e alguns passageiros tomam assento no Barreiro-A. Aquele casal já de certa idade, aquelas jovens, talvez estudantes e aquela senhora, tão airosamente vestida. Lembro-me do seu cachecol de seda, vermelho, que lhe acentuava a cor da sua pele, do seu belo rosto. Sentou-se à minha frente e cumprimentou-me.
– Venho quase todos os dias neste comboio e nesta carruagem mas nunca vi tão pouca gente.
– Pois eu, respondi-lhe, viajo tão pouco e já vi tanta gente.
Cruzámos alguns pensamentos. O comboio deslizou rapidamente sem darmos por isso. Já o Lavradio e a Baixa da Banheira tinham ficado para trás, quando avançou:
– A linha agora está eletrificada, o comboio é mais rápido.
O dia 14 de Dezembro de 2008 já lá ia. (foi o dia da inauguração da electrificação da Linha do Sado). Os festejos e os discursos desse dia também. Ressoam apenas as palavras do P.M.
“… O investimento público no comboio eletrico na Linha do Sado representa um ato de justiça para com os cidadãos do Barreiro”.
Olho através da janela e vejo a zona comercial de Alhos Vedros, com o Modelo a sobressair e penso: A justiça de que falava onde ficou? Parece não terem sido retidas pelo P.M. aquelas outras, ditas, naquela ocasião, pelo Presidente Carlos Humberto, “a necessidade do Barreiro está na justiça de ter mais desenvolvimento económico e mais emprego, num momento de crise que já atravessamos à escala nacional”. No entanto, o Presidente da Câmara reteve as do P.M. ao dizer: “Essa é uma afirmação que retemos e que registamos como sendo muito positiva e é mais um passo na concretização desse grande objetivo do Concelho, da Região e do País”, referindo-se à importância da TTT ter as vertentes rodo e ferroviária.
E com estes pensamentos já estava atravessando a linda ponte que atravessa o Tejo, de Barreiro a Chelas. Guiava devagar para usufruir a beleza do trajeto, como uma gaivota sobre o rio, mas na realidade apenas fiz o trajeto entre a Moita e o Penteado.
Chegámos ao Pinhal Novo. Aumentou o frenesim, as pessoas já procuravam os poucos lugares vazios.
– Já despertou? Ia muito pensativo, disse ela, e acrescentou:
– Agora sim é o comboio que conheço. Sabe que são milhares as pessoas que viajam nesta linha?
Olhei-a nos olhos, escuros, onde, apesar disso, pareceu-me ver alguma alegria, satisfação interior. Não consegui ler os seus pensamentos, os meus, talvez ainda nas asas da gaivota, transportaram-me para aqueles outros comboios de há quarenta e tal anos atrás. O destino era o Liceu de Setúbal para fazer exames. Era um comboio a vapor, um pouca-terra, lento. A carruagem tinha apartamentos para 4 ou 6 pessoas. Não eram tão cómodos, os bancos eram de pau, mas viajávamos mais em família.
– Hoje não há privacidade nas viagens, as carruagens são espaços abertos. Temos que nos alhear do burburinho, às vezes alarido, dos companheiros de viagem, se quisermos pensar.
Venda do Alcaide, Palmela, traz-me à recordação outros tempos. A monarquia com os seus serventuários, a nobreza, os castelos. Foi ainda no tempo dos reis que se inauguraram as linhas dos comboios. Também os reis estiveram no Barreiro em dia de inauguração. Um deles, no centenário da inauguração, foi lembrado. E depois o que ficou disso? Quem se vai lembrar mais? Vamos ficar por isso ou… vamos realizar um projeto de um Centro Histórico Ferroviário do Barreiro? E penso, (entre Palmela e Setúbal), este sonho só se concretiza com a população, com os barreirenses. Para isso é preciso sensibilizá-los para a preservação, dando-lhes a conhecer a história dos C. Ferro no Barreiro, dos seus obreiros, os ferroviários, e do seu património, para que participem e lutem pela sua reanimação e depois pela sua fruição.
Temos que lutar todos, criar as sinergias sociais e financeiras que sustentem o projeto que é complexo e de avultados custos, que por isso não pode assentar num só parceiro. As parcerias são importantes, não se esqueçam.
Ai esta minha memória, apenas participada pela senhora que vai à minha frente, olhando-me, tentando perscrutar-me os pensamentos. Então avancei:
– Gostava que esta memória fosse não só minha, mas sim coletiva, porque essa sim é instrumento fundamental do desenvolvimento humano e, quiçá, garantia de um futuro mais participado e melhor. Depois depositários desta memória temos a obrigação de a preservar e transmitir.
– É verdade, disse-me. Os núcleos museológicos são prova disso. Em Setúbal há museus que preservam a memória do trabalho e das suas gentes.
– E em Baúlhe, Lousada, Estremoz, Macinhata do Vouga, Entroncamento, Cachopo, entre outros, até dez, não preservam a memória dos comboios? Porquê então o Barreiro, terra de ferroviários, vai ficando esquecido?
Esquecido estava eu, enredado nestes pensamentos voltados para o futuro, quando a senhora me lembrou.
– Chegámos à Praça do Quebedo, eu fico aqui.
– Eu também, disse meio acordado, não chego às Praias do Sado. Tratarei de uns assuntos nas Finanças de Setúbal, motivo da viagem, e depois no regresso alinharei melhor os meus pensamentos.
Regressei uma hora depois ao Barreiro, sozinho.
Hoje, penso que também fiz a viagem na Linha do Sado, sozinho.
NUNO SOARES
2 Responses to "Uma viagem na linha do sado"
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