Rememorar os primeiros anos da revolução de Abril e todas as vivências que antecederam esse momento glorioso da nossa história-pátria, é um óptimo exercício de cidadania e elevação cívica, em tempos de alienação, apoiados na ideia de que a História com H grande, é feita também pelos “de baixo”, não é apanágio de príncipes-heróis, de grandes “cabos de guerra” ou de empreendedores “capitães da indústria”.
Entenda-se pelos “de baixo”, as massas laboriosas que trabalham para uma vida digna e todos os que lutam por uma humanidade equânime e pela transformação do mundo.
Referida a épocas em que a história da CUF e do Barreiro, está indissoluvelmente ligada à do regime ditatorial, violento e interesseiro que subjugou Portugal durante quase 50 anos, a presente narrativa fala sobretudo daqueles que com honrada dignidade e muito trabalho generoso e mal remunerado, construíram a fábrica e a urbe, contribuíram para a revolução magnífica iniciada em Abril de 1974 e encetaram os caminhos de um país novo, mais fraterno e mais justo.
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José Saramago, o maior escritor português e prémio Nobel da literatura, disse um dia em dado contexto que o homem mais sábio que conheceu, não sabia ler nem escrever!
Referia-se ao avô, pequeno camponês ribatejano que no Inverno gélido e terrível, metia os bácoros na cama para não morrerem de frio, porque disso dependia a subsistência futura da família.
Ocorre-nos reflectir, por analogia, que neste “inverno” terrível da nossa existência e da dita “austeridade”, que nunca mais chega ao fim, os “egrégios avós” que (mal) nos governam, em lugar de acarinharem os portugueses (novos e velhos), animando-os numa economia fortalecida e com uma (outra) política progressiva e patriótica, aumentando a produção nacional, criando a equidade social e gerando trabalho para todos, manda os cidadãos para a rua, para o desemprego, para a emigração, para a miséria.
Estes governantes direitistas e liberais, servindo desígnios alheios, não aprenderam com o avô do Saramago. Assim, não temos futuro, não vamos sobreviver como família/pátria, nem como nação soberana e independente!
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O Barreiro e a CUF medraram, cresceram, fizeram-se uma grande vila operária e um grande complexo químico-industrial, em boa medida pela contribuição do fluxo migratório do Alentejo, das Beiras, do Minho e do Algarve, num balançar formidável do interior para o litoral, desde os fins do século XIX e grande parte do século XX.
Num tempo em que os filhos da Vila-Velha andavam descalços quase todos, nas ruas do dia-a-dia do desenrasca (com pouca escolaridade, e prosseguir os estudos, nem pensar!), à procura de ofícios precários e com destino marcado (filhos de operários, operários seriam!), evocando o Zé Saramago, descobri a mulher mais sábia que encontrei em toda a vida!
“Ratinha”, de origem beirã e modesta, chegou ao Barreiro nos anos trinta, como tantos outros contemporâneos, sem saber ler nem escrever (a escola primária na aldeia natal, na região de Viseu, era só para os rapazes, as raparigas deviam ficar em casa!). Era o conselho do doutor Salazar, cumprindo assim o seu “plano de austeridade” – um conceito que portanto não é novo!
Trabalhando duramente no dia-a-dia, ligou-se a um autóctone e aqui constituiu família, ficando a morar na zona onde o rio Tejo ajudou a fundar a primordial comunidade piscatória, nessa altura dos anos 40/50, maioritariamente habitada por operários da CUF e dos Caminhos de Ferro.
Um dia a “beiroa”, e barreirense por adopção, levou o filho pequeno – 5, 6 anos – pela mão, carinhosamente, à escola particular da D. Calvete. O petiz caminhava lavado num grande pranto, sentindo a perda do grau de liberdade das brincadeiras de tarde inteira na Travessa do Poço e no Altinho, com os ganapos da zona e os prodigiosos brinquedos de pedras, pedaços de madeira e de cortiça. Sobretudo desgostoso pela perda maior das “estórias” que o avô Simpliciano contava com desvelo, sorvidas com enorme entusiasmo e encanto:
– Não me leves para a escola, mãe! Eu não quero ir para a escola!
Em silêncio, lágrimas rolando-lhe pela face endurecida pelas agruras da vida, a mulher magra e modestamente vestida, puxou suavemente o rapazito que tremia de desgosto, com um banquito de madeira debaixo do braço que o avô lhe fizera, único atributo obrigatório para aprender as primeiras letras e números:
– Tens de ir, filho! Tens de ir!… A mãe nunca foi à escola e tem muita pena!
Esta luz esplendorosa irradiou toda a vida como um farol de honradez, de integridade e de generosidade. Já muito débil, completará 93 anos no dia 25 de Abril. É também por ela, como pelos milhares e milhares de homens e mulheres do povo trabalhador que procuramos escrever deste lado certo da História.
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O lançamento do livro: A CUF NO BARREIRO, REALIDADES, MITOS E CONTRADIÇÕES, decorreu no domingo 6 de Abril, na Casa da Cultura dos Trabalhadores da Quimigal/Quimiparque, com quase 300 participantes que vibraram durante mais de duas horas, com as intervenções (cinco) e com os momentos de animação, de canto, teatro e música – cinco também! –
Francisco Naia, um alentejano – barreirense, no final empolgou a assistência que não arredou pé, com as suas cantigas de raiz popular e/ou evocativas da grande Revolução de Abril. Foi uma boa tarde de Primavera, de sagração da história dos “de baixo”. A História é uma ferramenta da memória e de aprendizagem do futuro.
Armando Teixeira
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