“A preguiça e a cobardia são as causas de os homens continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida.”
Immanuel Kant
Os incipientes “distúrbios” ocorridos durante o dia de ontem, no contexto da Greve Geral, são apenas um tímido prenúncio do que está para vir se a “crise”, como tudo indica, se aprofundar e os seus efeitos continuarem, como de costume e sobremaneira, a afectar os que, muito justamente, se sentem sem quaisquer culpas no cartório. Demais a mais quando vêem claramente visto que quem armou a bernarda se está a safar dela, endossando a factura aos que nenhumas responsabilidades tiveram (e escusam de vir com a cínica ladainha de que “os elegeram”, quando não terá certamente sido para isso, nem tendo sequer os principais, os “criadores”, não as “criaturas”, saído de qualquer eleição). Aliás, o Capitalismo e o Liberalismo (“neo” ou “arqueo”) são sempre “socialistas” e “intervencionistas” quando se trata de passar danos e prejuízos.
Podemos não estar a chegar ao “fim do mundo”, mas estamos por certo a chegar ao “fim de um mundo”, do tal mundinho aconchegado dos pobretes mas alegretes que justificou uma das maiores mentiras de todos os tempos, os “brandos costumes”. Ao rasgar-se o pacto social que sustentava a ordem estabelecida, que como muito bem entendeu Salazar e nisso teve um enorme, mas discreto, sucesso, assentava num “viver habitual” em que sem grandes ambições manifestas, as expectativas eram em geral bem-sucedidas (lá se ia andando). Tanto que permitiram ao filho do operário ser “mangas-de-alpaca” e ao filho deste ser engenheiro, sem ter que sair da sua “zona de conforto” (na expressão pouco convidativa de um Secretário de Estado recente, mas nada decente).
Estão convocados os demónios, senão vejamos: uma classe média que vê desmoronar?se num ápice uma vida que levou décadas, pelo menos três gerações, a construir; um “lumpen” que vai seguramente deixar de poder (o que aliás já se nota no disparo da criminalidade violenta) ser aquietado pelo “pocket money” dos “rendimentos de inserção”. O leitor poderá achar, tal como eu, que 500 euros mensais são um rendimento muito baixo, mas se fizermos um pequeno exercício verá que pode não ser bem assim: suponhamos que esses 500 euros vêm “sem osso” ou seja, que o resto dos encargos com habitação, água, energia, gás, alimentação, saúde e escolaridade estão mais ou menos assegurados e que esses 500 euros são, afinal “pocket money”, para, como canta o Rui Veloso, cigarros e bilhar, mais uma “bejecas” à mistura, e verá que muita gente supostamente mais abonada, que trabalha e paga impostos, não terá essa liquidez.
Mesmo para quem como eu, que só em teoria acredita que “sem tropa, nem polícia a vida é uma delícia” não é difícil prever que os efeitos desta hecatombe do “modus vivendi” tradicional acarretarão graves consequências ao nível da chamada “ordem pública” ou, pelo menos, do entendimento que dela têm os interesses privados que nos trouxeram até esta desgraçada situação. São disso testemunho as escaramuças de ontem, ligeiro choque com as lestas “forças da ordem”, lestas sempre que se trata destas coisas com trabalhadores e manifestantes, é raro ver tal prontidão com os arruaceiros das claques, por exemplo. Talvez seja por que estes fazem parte da sociedade do espectáculo que alimenta o “tittytainment” providenciado pela caixa electrónica, cada vez menos ama-seca e mais distribuidora de “leite” envenenado. É unânime que a Portugal sempre faltou uma elite competente e uma opinião pública esclarecida, mas nem sempre deixou de ser enraivecida, demais a mais tendo bastos motivos para isso. Os incidentes de ontem quer com os piquetes de greve, quer com os “indignados” na escadaria de S. Bento, quer os “cocktails molotov” que umas quaisquer “FP 37”, que certamente sem terem lido bem “The Anarchist Cookbook”, tal a falta de eficácia dos mais do que rudimentares engenhos, lançaram a horas mortas contra algumas Repartições de Finanças, símbolos do esbulho e da exacção a que está sujeita a parte dos portugueses que paga impostos, perante o crónico regabofe devorista, através de um Sistema Fiscal que saca sempre mais e mais a quem já é sangrado (trabalhadores por conta de outrem e poucos além desses) e deixa sempre de fora os reais interesses das reais corporações e os verdadeiros privilégios da grande corporação do cifrão, bem poderão ter sido apenas os “hors d’oeuvre” do que está para vir.
No dizer de um conhecido político, entretanto “adormecido”, é melhor que se vão habituando.
António José Carvalho Ferreira
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