UMA HISTÓRIA, UM LEGADO

UMA HISTÓRIA, UM LEGADO

25 DE ABRIL DE 1975

 A porta da rua fecha-se com um click! breve. Pouco passa das sete horas da manhã, fresca e luminosa da Primavera recente, prometendo um Sol ainda invisível, adivinhado por detrás do perfil das fábricas que se alinham a nascente.

    As pedras de basalto negro das ruas estreitas e polidas pela ancestral usura dos anos, ampliam o som dos passos cadenciados, e ressumam em negritude luminosa, a humidade da madrugada fria trazida pela neblina do rio ali tão perto.

    Na vila velha reina um quase – silêncio, próprio dos dias de descanso semanal. Hoje não se ouvem as buzinas a chamar o contingente obreiro para o labor organizado  nas empresas, que foram capitalistas e privadas mas agora estão ao serviço do País e da Revolução.

    No entanto, um ouvido mais atento e experimentado, percebe que no grande complexo químico – industrial, onde a laboração é contínua, o trabalho não pára! Há pouco, escutou-se o apito estridente do comboio que traz a pirite do Alentejo, da fome extensa e de subsolo riquíssimo, puxado pela pequena e característica locomotiva, sempre num lufa-lufa de dentro e fora incansável.

    As fábricas fumegantes e nervosas, com o treme – treme das máquinas, motores e outros equipamentos dinâmicos, precisam de ser alimentadas continuamente, pelas generosas mãos humanas de operários e operárias que agora , em Abril de 1975, trabalham para um futuro de maior justiça e de mais esperança !

 *

    Multiplica-se o som de portas de madeira rangendo, nas casas modestas de rés – de – chão ou de 1º andar, algumas centenárias, no intrincado de ruas e ruelas no coração do Barreiro antigo.

    As fachadas são simples, caiadas de cores claras, com janelas enquadradas por cantarias. Algumas têm pequenas varandas, outras são revestidas de azulejos, símbolo das raras famílias mais abastadas.

    Na rua sente-se o cheiro característico do mofo das habitações sombrias, misturado com o olor do café de cevada quente, que anima a refeição frugal da manhã, completada pelo pedaço de pão com margarina ( azeite também, porque muitos são oriundos do Alentejo ).

    A vizinhança cumprimenta-se por tradição, mas de alguns meses a esta parte nota-se mais afectuosidade nos semblantes. A revolução de Abril colocou sorrisos nos sonhos. São sobretudo pessoas de meia idade, algumas mais velhas, com rostos marcados pelo trabalho de muitos anos e de muitas privações.

    Uma fila enorme de cidadãos, iniciada ainda antes das sete da manhã, aguarda com alguma expectativa que as portas da centenária colectividade se abram.  

    As conversas em tom moderado são descontraídas e há alguns sorrisos em lábios habitualmente sisudos. A animação é motivada pelos “dixotes camarros” da Elisa “Ruça”, uma velha operária corticeira nada e criada no Barreiro antigo, com um feitio extrovertido :

   – É “pariga” ! Hoje “levantáste cede ! ”.

   – “Atão” !… “Venhe” votar ! Querias ser só tu !? – responde a Júlia do “Tonezinho”.

   – Eeeuuu !… Olha ! Não te deixes enganar pelo “punhe”, hem !

   – Ó filha ! Nunca me “enganarem” em nova, não é agora depois

     de velha !

    Riem os circunstantes que conhecem bem as duas vizinhas barreirenses de gema, de linguarejar característico da vila ribeirinha. Gente boa e solidária, sempre na primeira linha quando era preciso apoiar amigos e camaradas.

    Finalmente abrem-se as portas dos “Penicheiros”, são oito horas em ponto, a longa fila movimenta-se  mas ainda fica gente do lado de fora , sobretudo votantes da Mesa 8, homens e mulheres da vila velha que nunca tinham votado na vida.

 ( Apresentado no Encontro de Investigadores  Locais – Áreas Industriais e Comunidades Operárias )

Almada, 25/11/11

Armando Sousa Teixeira

 

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