A greve de 70 dias no Sul e Sueste – 3

A greve de 70 dias no Sul e Sueste – 3

Continuação : A greve de 70 dias no Sul e Sueste – 1920 – através dos Diários de José António Marques

No dia 3 de Dezembro:

«Ás 19h10 encontravam-se no Largo Casal muitos ferroviários, à espera de fresquinhas. Neste momento chegou uma força da GNR, a cavalo, a maioria meteram-se pela Leitaria do Lá-vai. A Guarda, ao ver isto, fizeram cerco à dita Leitaria. Desapearam 4 praças e 1 Cabo, estiveram a apalpar todos, sendo perto de 60 ferroviários. Alguns tentaram sair pela porta de trás mas, deram com a Guarda. O Farto Velho, o tempo que teve, foi esconder o revólver na boca do fogareiro. Não prenderam pessoa alguma, sendo um grande alvoroço por toda a vila.»

Nesse dia, ainda, soube-se «que o Comité foi chamado pelo ministro e suprimido o “vagão fantasma”, sendo soltos todos os grevistas na linha do Douro e Minho.»

No dia 4 continuava a greve, sendo cada vez mais grave a situação entre os ferroviários. «A maioria dos ferroviários encontrava-se no Largo, “esmorecidos”. Em casa soube que foram demitidos o João de Beja e o Maneca. Fizeram requerimento e a resposta foi, que, estavam já preenchidos os lugares.»

No dia 6 escrevia JAM que estavam «proibidos os ajuntamentos pelas ruas e estabelecimentos, era só aviar-se e sair logo. Os jornais traziam que a vila estava entregue ao poder militar. Foi substituído o Administrador do Concelho [pelo]Sr. Capitão Loureiro. Saí de casa, cheguei ao Largo Casal, fui depois até à praia, encontravam-se muitos ferroviários. Depois juntei-me de conversa com o Luís Penim, e outros, com respeito à nossa situação. Depois fomos pela praia, Jardim Público, Bairro Operário, etc. Pelas 17h50 chegou uma ordem que iam prender os ferroviários como vadios. Já foram presos 2, no Barreiro-A, como tal.»

Nos Paços do Concelho estava preso Júlio Veríssimo. «Fui ter com um oficial dizendo: parece mal-estar esse homem nessa prisão, como Presidente do Senado da Câmara. Resposta do oficial: não [o] conheço como tal, mas sim ferroviário, e se é por causa disso, ele segue já para entrar na cadeia. [E] seguiu depois para o vapor às 17h55.

Correu o boato que vão tomar a Associação de Classe, para quartel da GNR. Regressei a casa.

No dia 7 de Dezembro andou toda a manhã o Capitão Loureiro como Administrador do Concelho e prendeu 7 ferroviários. Depois mandou 3 embora. Continuavam as patrulhas pelas ruas da vila. Chegaram mais 150 praças da GNR, que fizeram aquartelamento na Associação de Classe e nas Cocheiras do Daciano. Não era permitido andar nas ruas, e, alguns empregados da Fábrica Herold, pediram um salvo-conduto. À noite houve reunião de ferroviários e corticeiros.»

No dia 8 ansiava-se que a greve terminasse.

«Chegou a notícia que a Comissão de Melhoramentos esteve no Ministério, mas não ficou nada resolvido. Saíram manifestos aos ferroviários e ao público, com os dizeres: apresentação dos ferroviários em massa, amanhã.» No Largo Casal, cheio de ferroviários, esperava-se pelo Comité.

No dia 9 de Dezembro, profundamente desalentado, escrevia JAM: «Terminou a greve dos ferroviários. Após 70 dias em greve perdemos, pelo motivo de fome, em diversos lares.»

Eis que, chegava ao fim, uma das mais longas paralisações registadas no Sul e Sueste, na qual a classe sofreu uma derrota tremenda. As reclamações não foram atendidas e muitos foram despedidos.

«Estiveram muitíssimos ferroviários no Largo Casal. Veio ordem para irem todos para o Largo dos Aliados. Em frente da Igreja da Senhora do Rosário falou o Rosa de Tunes, e, pelas 11h30, seguimos em massa, pela Rua Miguel Pais. Eram perto de 2000 homens para se apresentar ao serviço. Ao chegarmos em frente da minha loja, um alferes e 2 praças da GNR, a cavalo, não deixaram passar pessoa alguma. Formou-se uma comissão e foram à estação. Foi respondido à dita: não pode ser ninguém admitido sem requerimento. Respondeu o pessoal, todo à uma: vamos embora. Regressamos ao Largo dos Aliados e só apareceram uns 300 ferroviários. A maioria foi fazer requerimentos e outros já os tinham feitos, nas algibeiras. Quando regressámos ao Largo, passou pela Rua Miguel Pais uma força de cavalaria da GNR, acelerada, para a estação. No Largo, esteve numa das janelas da Igreja, falando, o Custódio Boa Vida, dizendo “não se faz requerimentos, que foi uma comissão a Lisboa”. Quando terminou, uma mulher que estava a ouvir, fugiu, e a maioria dos ferroviários idem. Mais tarde […] encontrava-se grande bicha nos Paços do Concelho, ao papel selado. Ao fim da tarde, já estavam 3 terços do pessoal com requerimentos metidos.

Encontravam-se muitos ferroviários pela praia, à espera de notícias de Lisboa. Avistou-se ao longe o Catraio do Mariano, todos a andar, e ele, foi para a doca da CUF. Vieram com a notícia que, a Comissão, ficou em Lisboa. Retirámos para o Largo Casal, fazendo bastante frio. No Largo estavam poucos ferroviários. Fui para a Sociedade de Instrução, mais o Custódio e o Aurélio.»

No dia 10 «Levantei-me às 7h30, estive com Rafael Soeiro e fomos até às Oficinas. Estavam perto de 60 ferroviários. Retirei e fui para a vila. Comprei, no José Café, por motivo de não haver papel selado, papel de 25 linhas. Estavam muitos ferroviários e mulheres, a comprar também. Entrou um ferroviário com “Batalhas”, debaixo do sobretudo, a vender.

Pelas 12h30 fiz entrega do meu requerimento na mesa. Regressei ao Largo Casal, uns faziam requerimentos, outros em procura de papel selado. No Largo estava grande número de ferroviários, ao sol. Chegou um camarada, dizendo que: vinha no jornal o nome de 400 ferroviários despedidos, do SS, Douro e Minho.

Soube que estavam a chamar alguns, que tinham metido os requerimentos de manhã. O Eugénio Silva veio despedido. Estavam muitos ferroviários a trabalhar nas Oficinas.

Mais tarde, uma grande claque, fomos até às Oficinas, estava grande porção de ferroviários, à espera que chamassem pelos nomes. Entrei pelo escritório:

Trazes fato de ganga?

Não.

Mandou-me a casa buscar.

[Depois vestiu-se no escritório.]

Tens ferramenta?

Não.

Mandou-me à Gare. Neste momento chegou um comboio, feito por militares. Pelas 17h12 o João da Luz mandou-me embora, fui para a vila. Falei com a Maria Gertrudes e regressei à Sociedade Instrução. Estive a jogar à bisca, mais o Júlio Martins…

O primeiro comboio, feito pelo pessoal foi para Setúbal, máquina nº 28, maquinista António de Oliveira, fogueiro o Balbino.»

Rosalina Carmona

Historiadora

Barreiro, 26 de Novembro 2011

Biobliografia

1 Arquivo Municipal do Barreiro, Melhoramentos na Vila do Barreiro Projectados pela Comissão Administrativa demissionária – 1918. CMB/B/A/0306/Cx 10, 1918-1969

2 O Sul e Sueste, nº21, 31 de Março, 1920

3 O Sul e Sueste, nº21, 31 de Março, 1920. Eram todos membros da Associação de Classe

4 O Sul e Sueste, nº22, 23 de Abril, 1920

5 O Sul e Sueste, nº22, 23 de Abril, 1920.

6 «Chega a ser ridículo o vencimento da maioria dos ferroviários, comparável com os de certos moços de escritório, no entanto as suas responsabilidades são enormíssimas, e o seu trabalho extenuante e arriscado. Dia a dia os lares ferroviários são assaltados por doenças provenientes da sua má alimentação e das intempéries a que estão sujeitos, devido à falta de conforto tanto interior como exterior e não há meio de aparecer uma creatura, que dentro dos processos legaes, legítmos e humanos ponha termo a tal situação…». “Terrível Situação”, O Sul e Sueste, nº33, 16 de Agosto, 1920, p.2

7 «Pessoal efectivo auxiliar, ou eventual 70$00; pessoal feminino 50$00; aprendizes, boletineiros e praticantes 50$00; reformados 50$00; pensões de sobrevivência 35$00» O Sul e Sueste, nº20, 14 de Março, 1920. Reclamações que já estavam na origem de uma outra greve, ocorrida em Novembro de 1919.

8 O Sul e Sueste, nº25, 20 de Maio, 1920. Nesta altura trabalhava-se 10 horas nas Oficinas dos CFSS, não sendo observada a lei das 8 horas, aprovada em 7 de Maio de 1919.

9 Acção, nº 2, 24 Outubro, 1920

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