“Barreiro, 3 de Outubro de 1910. – É recebida com desgosto a notícia do assassínio do distinto psiquiatra, o nosso prestimoso amigo Dr.. Miguel Bombarda, a quem devemos o precioso prefacio ao nosso
livro de filosofia, o Negativismo.
Pelo facto lavra grande desgosto entre o povo.
Para a noite principia a notar-se desassossego.
Pela uma hora e meia da noite já vai havendo grande reboliço. Pelas trez horas vão-me acordar em sobressalto, prevenindo-me de que alguma coisa de anormal se estava passando…
Sem surpresa fui-me vestindo, enquanto o sino de Santa Cruz vertiginosamente tocava a rebate.
Passam grandes turbas de povo amotinados desfraldando a bandeira bicolor da
republica.
Os vivas de entusiasmo atroam os ares.
Conhece-se que investem com os Paços do Concelho. Ouço bater repetidas vezes e com frenesi ao portão. O guarda do edifício hesita em abrir. Entretanto a multidão consegue escalar a varanda do edifício.
Oiço o despedaçar de vidraças, ao mesmo tempo que o. portão se abre, e a turba entra nos Paços do Concelho, por entre aclamações de gloria á Republica Portuguesa.
Da minha janela vejo que se hasteia no alto do edifício a bandeira encarnada e verde que todos salvam com vivas entusiásticos.
E’ dia. A repartição de Fazenda e Administração, instaladas nos Paços do Concelho
conservaram a suas portas cerradas.
Estão interrompidos os serviços publico.
Aqui viera alguém da Aldegallega na véspera e reunira clandestinamente com os revoltosos para as bandas do cemitério novo.
De madrugada por isso, e em virtude de acordo prévio, foi aclamada da rua por todo o povo uma junta que da janela dos Paços haviam indicado.
Tendo-se deliberado que o professor Al-berty ficasse como Administrador, foi nomeado para a Junta em sua substituição o sr, João dos Soutos Pimenta.
Há effervecencia, hesitação e duvida. As fabricas e officinas interrompem os seus trabalhos.
Entretanto a Junta revolucionaria reúne e adopta ais medidas que entende mais imediatamente necessárias para que a revolução triumphe, com aplauso unanime de todo o povo alvorotado.
São levantados os rails do Caminho de Ferro e cortadas as linhas telegraphicas, ficando assim interrompidas os comunicações. Os próprios vapores do mar fazem poucas e irregularíssimas carreiras para Lisboa.
Uma terça feira de manhã. As ruas e todas as dependências dos Paços do Concelho encontravam-se repletas de povo. Naquela noite ninguém dormira.
A hesitação e a ansiedade eram enormes.
No meio daquela imensa multidão continuava reunida a Junta Revolucionaria.
Uma força dos 12 soldados se apresentara de passagem, mas em ordem de serviço
estranha ao movimento revolucionário.
Pretendera o povo embargar-lhe a passagem, o que causou duvidas o porventura
comprometimento ao sargento.
Por este motivo foi ouvida a Junta, e resolvido deixar a força, visto que era
alheia á revolução. Contudo foi chamado o sargento que compareceu.
Falhou-lhe o cr.° Caetano, exortando-o como filho do povo a que aderisse á causa popular . Ao retirar-se satisfeito com a resolução, foi ruidosamente victoriado pelo povo que lhe deu ordem de seguir.
Em seguida o Presidenta da Junta convidou o Redactor do Avante, que se achava presente, a declinar as suas ideias e opiniões.
Ali, em presença de todo o povo, ele declarou alto e solenemente que, sem perder nem renegar a sua qualidade e convicções de socialista que continuaria a manter, punha-se nesta hora de lucta pelo progresso, incondicionalmente ao serviço da revolução, e que o Presidente nada mais tinha do que designar-lhe o posto que devia ocupar, para que ele pudesse desempenhar-se cabalmente da sua missão.
Noite de 4 para 5
E’ passada em vivo sobressalto por toda a população que aguardava anciosa o resultado do bombardeamento e tiroteio que se ouvia para os lados de Lisboa.
Dia 5
Continuam interrompidas as comunicações de Caminhos de Ferro, vapores, telegraphos e telephones.
Não ha jornaes nem correspondências.
Logo de madrugada principiou a circulação do povo. O sono foi a curto, rápido e desassossegado.
Tocaram as buzinas das fábricas a chamar os seus operários, mas ninguém
compareceu. Nos fabricos de cortiça também não se trabalhou.
Entretanto a Junta, reunida nos Paços do Concelho, delega uma Comissão de que faz parte o Sr. José Luiz da Costa, para ir no rebocador Victoria em missão a bordo do
cruzador S. Raphael, que içara a bandeira bicolor, a fim de lhes perguntar se precisariam de carvão ou mantimentos.
São bem recebidos. O S. Raphel fornece-lhos alguns marinheiros e armamentos e
enviam-nos a bordo do Adamastor, onde receberam uma comunicação para quo Valle
de Zebro, o depósito de torpedeiros, adherisse e fornecesse mais armas.
Muito a tempo regressa o Victoria, trazendo noticias do que a revolução
vincara, e estava implantada a Republica em Portugal.
Há grande regozijo em toda a villa. Estaleja no ar abundante fogueteria.
Imediatamente vai o povo buscar a Filarmónica Marcial Capricho Barreirense e, com ela á frente a bandeira do Centro Republicano desfraldada, leva os marinheiros e o povo já armado e em forma, percorrendo a rua António Augusto de Aguiar, rua Serpa Pinto e rua Albers, até aos Paços do Concelho.
Ali se produz uma ruidosa manifestação. Junta-se mais povo e todo em numero grandioso só põe em marcha a caminho do Valle de Zebro. Era meio dia.
Lá chegados, são bem recebidos. Um dos oficiais manda formar as forças, mete-se dentro delas, lê as ordens, dispara um tiro nos miolos e morre.
Entretanto Valle do Zebro adhere, fornece armas ao povo, que embarca para o mar em bom número a bordo de trez torpedeiros e uma canhoneira.
São trez horas da tarde. Ao Presidente da Junta Revolucionaria apresenta-se em frente da Repartição do Correio o sr. João Gregorio da Silva Cavaco, portador da comunicação de que entre Pinhal Novo e Valdera estava uma força do umas setenta praças de cavalaria que se dirigiam para Lisboa, pela via do Barreiro.
Um outro indivíduo assevera que aquela cavalaria era a guarda de esclarecedores de dois regimentos que vinham na retaguarda.
O povo alvorota-se. Chega numa zorra ao portal dos Paços do Concelho com armamento. Mais povo ainda se arma de espingardas e bandoleira e partem ao encontro do suposto inimigo.
São sete horas da noite. Chegou a notícia de que a Republica fora
definitivamente proclamada na casa da Câmara de Lisboa.
Há grande algazarra e vozearia para as bandas dos Paços do Concelho.
Debruço-me, e parece-me ouvir discursos enthusiasticos, pronunciados da janella para a rua.
O povo ficara felizmente satisfeito com a realização do seu almejado ideal, e nós também que vimos de-pontar a hora em que as classes trabalhadoras vão principiar a trabalhar para ellas, já que até aqui tinham trabalhado para a burguesia capitalista.
E com este comentário nos fomos deitar satisfeitos, por não termos de perder mais uma noite sem dormir.
Dias 6,7.8.9
Inicia-se a caça aos frades e aos jesuíta. A ordem tende a restabelecer-se.
Os mais curiosos vão até Lisboa ver os estragos da Revolta.
Toda a thalassaria do Barreiro adhere sabujamente, dizendo alguns dos mais
retrógrados caciqueiros, que sempre tinham sido… republicanos.
Houve muito quem sentisse náuseas de tanta baixeza. Protegidos pela grandeza
dos nossos ediais socialistas, nós nada sentimos senão firmesa e seriedade.
Dia 10
Terminada a revolução, renasceram desintelligencia no seio da família republicana.
Por isso saiu da Câmara a Junta Revolucionaria, tomando posse dos destinos d’este Município a Comissão Municipal Republicana, conforme a letra de um recente decreto.
Aqui pomos ponto na nossa reportagem, pois nos queremos conservar extraímos a taes assumptos, como é do nosso dever e lealdade. ”
ÁVANTE!
Barreiro, 20 de Outubro de 1910
Texto publicado no Jornal Avante
Pelo seu director, Ladislau Batalha
Novembro de 1910
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