O “modelo” da presidente do grupo Espírito Santo Saúde para garantir a “sustentabilidade “ do SNS

O “modelo” da presidente do grupo Espírito Santo Saúde  para garantir a “sustentabilidade “ do SNS

O “MODELO” PARA GARANTIR A “SUSTENTABILIDADE” DO SNS DA PRESIDENTE DA ESPIRITO SAUDE OU, A MELHOR FORMA, DE DESTRUIR O SNS E DE TRANSFORMAR A SAUDE NUM GRANDE NEGÓCIO PARA OS PRIVADOS FINANCIADO PELO ESTADO

No dia 24.2.2011, foi feito o lançamento do 1º número dos “Cadernos de Saúde e Sociedade”, uma revista coordenada pelo Dr. Adalberto Fernandes e aberta a várias correntes de opinião, que procura promover o debate objectivo sobre os problemas da saúde em Portugal em que estivemos presentes. Para essa sessão foi convidada como conferencista a engª Isabel Vaz, presidente do grupo Espírito Santo Saúde, que aproveitou a ocasião para apresentar o seu “modelo” para a saúde em Portugal que, segundo ela, garantiria a sustentabilidade do SNS.

Interessa conhecer e analisar esse modelo, até porque ele é o modelo que os grupos privados da saúde defendem e que o PSD, na sua proposta de revisão da Constituição da República que apresentou em 2010, dá cobertura. Por outras palavras, é um “modelo” que tem importantes apoios quer a nível dos grupos económicos quer junto dos partidos da direita.

Mas antes de o analisar interessa ter presente alguns dados sobre os grandes grupos privados da saúde em Portugal, até para que a questão seja devidamente contextualizada e compreendida.

Em Portugal, os principais grupos privados de saúde são a Espírito Santo Saúde, HPP Saúde e a Mello Saúde que detêm 70% da quota de mercado privado da saúde. A Trofa Saúde e a AMI – Assistência Médica Integral são líderes de uma segunda linha de unidades independentes do foro bancário. Estes grupos tiveram, em 2009, um volume de negócios que, segundo os respectivos relatórios e contas, atingiu 641 milhões €, repartidos da seguinte forma: HPP do grupo CGD: 143 milhões €; ES Saúde do grupo Espírito Santo: 185 milhões €; José Mello Saúde : 254 milhões €; Trofa Saúde : 59 milhões €.

Segundo o Relatório e Contas de 2009 do grupo Caixa: “Estima?se que o volume de negócios dos hospitais privados tenha ultrapassado os 700 milhões de euros em 2009 e atinjam os 1 200 milhões de euros nos próximos dois a três anos. Os hospitais privados têm, actualmente, 3 000 camas, devendo atingir as 5 000 com novas unidades de saúde, são já responsáveis pela realização de mais de 25% das cirurgias em Portugal e apresentam um peso crescente em todos os indicadores de produção clínica”.Todos estes grupos possuem companhias de seguros especializadas também em seguros de saúde (em Portugal já existem mais de 2,3 milhões de portugueses com seguros de saúde).

Por outras palavras, o negócio privado de saúde em Portugal dá já muitos milhões de euros aos grandes grupos económicos sendo, como constou durante muito tempo do “site” da José Mello Saúde”, considerado por estes como “o negócio do séc. XXI”. Mas o problema que enfrenta é que os baixos rendimentos auferidos pela maioria dos portugueses e a concorrência do SNS impedem o acesso destes aos serviços privados de saúde, constituindo esse facto o obstáculo mais importante à expansão destes grupos e ao aumento do seu volume de negócios e de lucros.

É com este enquadramento que a proposta (“modelo”) da presidente do grupo Espírito Santo Saúde poderá ser claramente compreendida. E isto porque ela visa resolver esse problema que enfrentam actualmente os grandes grupos privados da saúde, como iremos mostrar.

Não vamos perder tempo com a parte introdutória da exposição em que Isabel Vaz do grupo ES Saúde manifestou as suas preocupações com a saúde dos portugueses e com a sustentabilidade do SNS, e centralizemos a análise no núcleo duro e mais importante da sua intervenção.

De uma forma sintética podemos apresentar esse “modelo” da seguinte forma. Actualmente gasta-se em Portugal com a saúde dos portugueses o correspondente a cerca de 10% do PIB, sendo 7% (70%) pago por fundos públicos e os restantes 3% (30%) suportados directamente pelos portugueses. E a proposta da presidente do ES Saúde resume-se no seguinte: os 3% do PIB suportados directamente pelos portugueses passariam a ser utilizados, na sua totalidade, em adquirir seguros de saúde, com os quais os portugueses teriam a liberdade de ir depois adquirir aos prestadores de serviços de saúde, públicos ou privados, esses serviços, pagando depois o Estado o resto (com os 70% de fundos públicos gastos actualmente com a saúde dos portugueses). As companhias de seguros e eventualmente as ADS´s fariam contratos com os prestadores de serviços de saúde (públicos e privados), e assim os portugueses ficariam com liberdade de escolher. Como era natural que os 3% do PIB gastos directamente pelos portugueses não fossem suficientes para adquirir os seguros de saúde, o Estado financiaria aqueles que não tivessem meios suficientes, para eles também terem liberdade de escolha entre serviços públicos e privados. É um “modelo” simples que certamente ampliaria o mercado dos grupos privados de saúde embora com custos imprevisíveis para o Estado e para os cidadãos.

Durante a sessão coloquei a Isabel Vaz, entre as múltiplas questões que tal “modelo” levanta, apenas uma, que foi a seguinte. É sabido que no sector da saúde os investimentos são muito caros, e os custos crescem muito rapidamente. Como é que se garantiria a sustentabilidade do SNS desta forma, duplicando os prestadores (públicos e privados) que concorreriam entre si em pé de igualdade mas sendo assegurado o seu financiamento pelo Estado? Como é que se garantiria que muitos serviços, incluindo hospitais, não ficassem subutilizados por falta de “clientes” determinando para o País custos acrescidos? Como que o Estado sendo obrigado a financiar de igual forma os serviços privados e serviços públicos, tudo dependendo da escolha (procura) aleatória dos utentes (e sabe-se que os grupos privados são exímios na utilização do marketing para captar clientes, muitas vezes até de forma enganosa) não corria o risco de, para além de ter de financiar os privados, ter ainda de suportar os custos de muitos serviços de saúde públicos que ficariam “às moscas”? . Perante estas questões incómodas, e não estando preparada ou não querendo responder, a presidente do ES Saúde apenas soube dizer que esta visão era “estalinista” (o frágil “verniz democrático” da presidente do ES Saúde estalou rapidamente) e que o “mercado” (mais uma vez os “mercados” cujas consequências o País e os portugueses já conhecem bem) resolveria o problema, determinando o fecho daquelas unidades de saúde que não tivessem “clientes” suficientes.

No entanto, o “modelo” defendido pela presidente do ES Saúde merece que nos debrucemos ainda mais sobre ele até para que fiquem claras outras facetas dele.

Em primeiro lugar, o facto do acesso à saúde em Portugal passar a depender de se ter um seguro de saúde, e sendo este fundamentalmente fornecido por grandes grupos económicos, para além de ser já um grande negócio para as seguradoras destes grupos, iria depois também permitir a estes condicionar a escolha dos portugueses na preferência por este ou aquele prestador de serviços de saúde. E isto até porque essas seguradoras iriam estabelecer contratos com alguns dos prestadores, preferencialmente os pertencentes ao respectivo grupo económico. Basta lembrar o que sucede actualmente com os bancos que concedem um empréstimo e procuram condicionar o seguro de vida que exigem para que seja feito no companhia de seguros do grupo.

Em segundo lugar, embora a presidente do ES Saúde tenha apresentado o seu “modelo” como aquele que garantiria a sustentabilidade do SNS não apresentou um único dado que provasse essa afirmação. Ela não possui quaisquer estimativa de custos quer para o Estado quer para os portugueses. A experiencia de outros países, como é o caso dos Estados Unidos que tem um modelo que assenta em seguros de saúde, revela que é um modelo extremamente caro (os EUA gastam com a saúde da população o correspondente a 15% do PIB, portanto mais 50% do que média europeia), e provoca uma elevada exclusão (nos E.U.A. existem mais de 50 milhões de americanos sem acesso à saúde, precisamente por não poderem pagar um seguro de saúde, que o actual presidente está a procurar resolver, mas que enfrenta forte oposição de importantes “lobbies”). O que diferencia o modelo americano da proposta de Isabel Vaz, é que no primeiro caso os seguros de saúde são financiados pelas empresas e pelos próprios, enquanto em Portugal seriam financiados pelo Estado e pelos portugueses.

Em terceiro lugar, a liberdade escolha assente em seguros de saúde controlados fundamentalmente por grupos privados, embora a presidente do ES Saúde tenha dito que o Ministério da Saúde, através das ARS´s também poderia concorrer neste mercado com privados, o certo é que levantaria problemas graves à sustentabilidade de muitas unidades de saúde pública. Com a redução de utentes e, consequentemente, do seu financiamento seriam levadas a fechar. E com a progressiva redução do sector público de saúde, e sem a concorrência deste, os grupos privados rapidamente dominariam o mercado da saúde em Portugal, e certamente aproveitariam esse domínio para impor as suas condições. Veja-se o que acontece em mercados como é da energia, onde dominam. Desta forma também o acesso de todos a serviços de saúde como estabelece a Constituição da República não ficaria garantido, pois só teriam acesso a eles os que pudessem pagar o valor fixado. É certamente por esta razão que o PSD está tão interessado em alterar a Constituição precisamente neste ponto.

Com o aumento da esperança de vida aos 65 anos e, consequente, envelhecimento da população, e com o aparecimento continuo de novos medicamentos e de novos equipamentos que permitem prolongar a vida humana com um mínimo de qualidade, os custos da saúde tendem continuamente a aumentar. O desperdício nesta área determinada por duplicações de prestadores, de equipamentos, só poderá ser mais caro para o País e para os portugueses. Mais que qualquer outra área, já que o bem saúde é um bem diferente de todos os outros bens, pois o que está em causa é a vida humana, e por isso deve ser garantido a todos os portugueses, para que isso seja possível é necessário evitar o desperdício, as duplicações de serviços que são extremamente caros. Por isso a intervenção do Estado neste sector é fundamental, e o domínio do mercado como defende Isabel Vaz só poderá determinar uma situação em que este bem vital fique acessível apenas aos que têm dinheiro, até porque os recursos do Estado são escassos.

Eugénio Rosa
Economista
26.2.2011

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