1958, últimos dias de Maio. A Sala 2 da cadeia do Aljube, cheia de presos. Todos, condenados a pesadas penas e com medidas de segurança. Alguns, vindos da fortaleza de Peniche – como Salvador Amália, Francisco Lopes Cipriano e Nuno José Potes Duarte – à espera de serem libertados. Nós, acabados de sermos condenados, pelo trio de juízes comandados pelo juiz Caldeira, no odioso Tribunal Plenário de Lisboa – Armando José da Cunha Santos, Lenine Maria Sobreiro e Alfredo Rodrigues de Matos, precisamente a 13 de Maio. O Armando iria para a fortaleza de Peniche, o Lenine e o Alfredo, para o forte de Caxias.
A cadeia do Aljube: no rés-do-chão, o parlatório para visitas de 15 minutos; o preso, a um metro da família, separados por rede e pelo carcereiro – ou o agente da Pide – sempre presente e de ouvidos à escuta. No 2º piso, as celas, individuais, de isolamento total, mais conhecidas por “gavetas” ou “curros”, pelo exíguo espaço, onde o preso disputava com o bailique a posição de estar. No 3º piso, a Sala 2. No 4º piso, a Sala 2 A e, no 5º piso, a enfermaria.
Do outro lado da calçada, a Sé, carregada de mistério. Os pombos, aos bandos, rasgavam o céu, poisando, livres, como os nossos sonhos.
O passeio, a subir e a descer. O eléctrico, de que se via o teto, para cima e para baixo, chiava. Gente, para um lado e para o outro. De repente, alguém, elegantemente vestido, atravessa a rua e pára, no passeio, de costas para a Sé, braços abertos, erguidos, em jeito de abraço, as mãos apontadas para o ar, para o Aljube, gradeado, figura imponente, alta estatura, forte, sorriso luminoso, acenos rasgados, gestos largos, continuados, mesmo ali em baixo. Visto cá de cima, figura magnífica – Arlindo Vicente, candidato a Presidente da República Portuguesa contra o fascista Américo Tomás, em eleições marcadas para 8 de Junho.
Foi uma visita inesperada. Nenhum preso, da sala 2 da cadeia do Aljube, sequer sonhava em ver ali em baixo, sobre o passeio, frente à cadeia, olhando-nos, para dentro das grades, sem medo, como que a dizer-nos, “estou convosco! Salazar vai ser derrotado! Vamos libertar todos os presos políticos! Os democratas estão unidos! Temos connosco o Povo! Vamos vencer!”
Foram largos minutos, sempre em gestos ritmados, até que, em passo lendo, Arlindo Vicente foi descendo a calçada até o perdemos do ângulo de visão.
Arlindo Vicente despertou em todos nós a esperança de que o regime fascista iria ser derrotado. E foi de facto derrotado, mas dezasseis anos depois. É que, naquele momento, já se adivinhava a fraude eleitoral, a indignação e o luto como resposta, e o castigo que nos foi aplicado e que nos acompanhou a mim e ao Lenine para o forte de Caxias e ao Armando para a fortaleza de Peniche.
Aquele momento muito breve, há 54 anos, de Arlindo Vicente, na calçada da Rua Augusto Rosa, frente à cadeia do Aljube, nos meus 23 anos, ajudou a moldar o meu percurso pela vida fora. Obrigado, muito obrigado, Arlindo Vicente.
Alfredo de Matos
2 Responses to "ARLINDO VICENTE. O BREVE MOMENTO"
You must be logged in to post a comment Login