Do Barreiro partiram os primeiros comboios que um dia chegariam ao Alentejo profundo e ao Algarve, encabeçando todas as linhas e ramais a sul do Tejo.
Desde cedo foi o principal depósito de todas as locomotivas que nelas circulavam.
Assistiu à implementação da era do vapor, contando com a presença das mais belas e potentes máquinas de ferro que circularam no Sul e Sueste. No princípio dos anos 60 chegaram as máquinas diesel, e, por enquanto e até hoje, o Barreiro foi e é ainda terra “dos comboios”.
A partir do dia 6 de Junho de 2004, o depósito de material de tracção do Barreiro, deixou de ter relevância para a empresa, o que se veio a traduzir na sua extinção.
Com a conclusão do eixo norte sul e a utilização ferroviária da ponte 25 de Abril, os comboios inter-cidades e inter-regionais com destino ao Algarve e Alentejo, passaram a ter como estação de origem a estação do Oriente em Lisboa.
Os comboios do tipo “regionais” passaram a ter como estação de origem o Pinhal Novo.
Mais tarde voltaram a partir do Barreiro e há cerca de um ano, que partem da estação de Setúbal, mas a sua morte já foi anunciada e prevê-se que fique apenas um comboio em cada sentido com destino a Tunes.
A tracção desses comboios passou a ser eléctrica, contribuindo para a extinção de uma significativa percentagem do parque de material diesel da CP.
O fim do terminal de mercadorias do Barreiro-terra e a criação do depósito de tracção do Poceirão (só de mercadorias) teve por base, a reorganização da CP em unidades de negócio.
Desta reorganização resultou a extinção do depósito de máquinas do Barreiro e o consequente abandono de todos os serviços, referentes á formação e acompanhamento dos comboios.
Desta forma, o pólo ferroviário do Barreiro viu-se amputado da sua maior riqueza: os trabalhadores.
Dos mais de 1500 que em 1992 operavam no sector, restam hoje, por força da divisão da CP em Soflusa, EMEF e REFER, cerca de 300.
O depósito de locomotivas e carruagens (junto às gares da estação) passaram a albergar as locomotivas que entretanto foram abatidas ao serviço, bem como material rebocado sem utilidade comercial.
O abate indiscriminado de locomotivas e automotoras afectas ao parque diesel da CP, levou a que fossem deixadas ao abandono, permitindo o vandalismo e roubo de peças que agora inviabilizam o seu funcionamento.
Caso flagrante é o da locomotiva Alco 1501, estacionada recentemente na rotunda do depósito, a qual, em consequência de uma vigilância inadequada, foi vítima de actos de vandalismo.
Durante vários anos todo este material circulante, foi votado ao completo abandono, tendo sido totalmente saqueado. Tudo que era cobre e alumínio desapareceu sem deixar rasto.
Só depois do material circulante estar praticamente todo destruído é que foram tomadas algumas medidas, nomeadamente, esconder as carruagens na estação do Pinheiro e colocar seguranças no Barreiro (onde foram colocadas as locomotivas).
Porém, estas medidas tardias, só foram tomadas, pelo facto de a parte das locomotivas já se encontrarem vendidas ao País dos “pampas” a Argentina.
Só por isso, foi tomada consciência da necessidade de preservar, caso contrário, se tivessem permanecido na mesma situação, por mais dois meses que fosse, e já nem haveria material que pudesse ser reparando e vendido à Argentina.
É claro que, com o fim do depósito de máquinas e da exploração ferroviária, parte dos edifícios foram também abandonados.
Armazém regional, rotunda, oficinas e muitos armazéns e valências foram assim encerrados, alguns até emparedados, deixando de ter a função e a utilidade que tinham até aqui.
E foi desta forma que em 2004 ficou reduzida a exploração ferroviária no Barreiro, que passou a ser composta apenas por um posto de tracção e revisão afectos á unidade de negócios CP Lisboa, que assegura a exploração e funcionamento da linha do Sado, agora electrificada, com novos apeadeiros e com material circulante transferido da linha de Sintra.
Apesar de todos os interessados reconhecerem a sua utilidade, pairou sobre a linha do Sado a ameaça do fim da exploração do troço entre Pinhal Novo e Praias do Sado, conforme se pode constatar pela leitura do plano estratégico “CP Líder 2010”, que o reputa como sendo uma “iniciativa de Alta-prioridade” e de “fácil implementação”.
Apesar das ameaças do fim da exploração, a conclusão da electrificação do troço Pinhal Novo – Barreiro, bem como as obras complementares que lhe estão subjacentes, nomeadamente, renovação de estações e apeadeiros, revestiram e revestem
uma enorme importância para populações locais.
A entrada em funcionamento da total electrificação entre Barreiro e Praias do Sado, no final do ano de 2008, demonstrou quanto valeu a pena não baixar os braços, e avançar com as mais diversificadas acções promovidas pela Comissão de Utentes da Linha do Sado, pelas estruturas representativas dos trabalhadores e das pelas autarquias.
A concretização da modernização e a electrificação da Linha do Sado ficou assim a dever-se, no essencial, à luta dos utentes, dos trabalhadores e do Poder Local democrático da Península de Setúbal, apesar de em declarações do Ministério das Obras Públicas e dos Transportes e da própria REFER estas chegaram a estar dependentes dos estudos sobre a terceira travessia do Tejo e da viabilização do TGV, que não podem ser postas em causa pelo que representam para o desenvolvimento económico, assim como para a criação de emprego.
Populações, utentes e trabalhadores, os seus movimentos e organizações, Autarquias Locais e outras instituições democráticas, saberão dar resposta atempada contra a privatização da linha do Sado, bem como contra o fecho das oficinas no Barreiro e o fim dos cerca de 200 postos de trabalho da EMEF, mencionados no plano e orçamento para 2011 da CP.
A concretizar-se esta intenção da CP, o Barreiro ficaria apenas com cerca de 80 postos de trabalho da linha do Sado e mesmo estes desaparecerão com a construção da TTT e a provável privatização da Linha do Sado.
O Concelho do Barreiro, com 150 anos história de ferroviários, fica despojado deste sector da população, ficando a ver “passar comboios”, (agora na nova gare do sul).
Quanto aos comboios de alta velocidade, nem sequer vamos poder acenar com um lenço branco, porque passam por baixo do chão no trajecto a fazer no nosso Concelho.
Para inverter este quadro dramático, deve ser tida em conta uma nova perspectiva de modernização e instalação no Barreiro de uma nova unidade oficinal para manutenção e reparação de todo material motor da rede convencional da área metropolitana de Lisboa, conforme chegou a ser anunciada pela Exª Secretária dos Transportes, Drª Ana Paula Vitorino e pela REFER.
O Barreiro, ficaria assim com duas novas oficinas: uma destinada à manutenção dos comboios de alta velocidade e outra, destinada aos comboios convencionais, assegurando-se a continuidade dos postos de trabalho, dos saberes e experiência adquiridos ao longo dos 150 anos de comboios no Barreiro, mantendo-se, renovada é certo, a característica de cidade ferroviária.
Será justo que o continue a ser no futuro, mantendo-se a tradição e adequando-se os meios às necessidades dos tempos modernos, sem perdermos o nosso lugar na história dos comboios no Barreiro.
A realidade ferroviária faz parte da memória,da história e da identidade do Barreiro.
Tendo em conta o interesse público, municipal e nacional, é possível classificar todo o Património material, imaterial e técnico ferroviário do Barreiro.
A possibilidade de criação de um núcleo museológico ferroviário, integrado numa rede do Centro histórico do património industrial, a funcionar em sintonia com o programa do MNF – Museu Nacional Ferroviário, com sede no Entroncamento, poderá ser uma forma de preservar a nossa história.
Bastará, para tanto, que as entidades públicas e privadas, municipais e nacionais, tomem as devidas precauções para evitar a degradação do material actualmente ainda existente, reduzindo, dessa forma, os custos com a sua futura recuperação para integração no núcleo museológico ferroviário.
Os edifícios presentes na área envolvente do depósito de máquinas, nomeadamente o armazém regional, a rotunda de locomotivas e áreas desafectadas das oficinas, constituem espaços adequados para exposições sobre a temática ferroviária.
Nesta área, seria possível preservar a memória dos ferroviários, a história oficinal do Barreiro, bem como a memória das profissões (únicas) que foram criadas pela implementação do caminho de ferro.
Será possível,e tem um enorme interesse, dotar a velha rotunda com locomotivas em estado de marcha, com vista a organização de recriação de viagens históricas nas linhas a Sul e Sueste.
Na verdade, existem variadas peças com interesse histórico, nomedamente, um guindaste a vapor, peça única da arqueologia industrial, que se encontra junto à Rua Miguel Bombarda e que foi usado até 1969, no carregamento do carvão destinado ao abastecimento dos “tenders” das locomotivas a vapor.
E se em matéria de peças e máquinas, a sua existência está devidamente comprovada, é importante não esquecer o património edificado, como é o caso dos edifícios Ferroviários, nomeadamente, a Estação Centenária, inaugurada em 1884 do Barreiro Mar; a frontaria da antiga Estação Ferroviária, actual edifício da EMEF, doca, rotunda (antigas cocheiras das locomotivas a vapor), armazém regional, antigo edifício da Região, antigo armazém de viveres, Bairro Ferroviário, depósitos de água etc etc.
Dezenas de outras peças de menor envergadura, material das oficinas e outros, encontram-se ainda no Barreiro, integrando o legado Património Ferroviário.
Existem, de facto, diversas e variadas peças de inquestionável interesse histórico e arqueológico, embora, se nada for feito num curto espaço de tempo, se preveja a dissipação total deste legado.
O Barreiro foi, ao longo dos anos, considerado como a “Catedral do Diesel” pelos ferroviários, pelo que também este segmento deveria ser preservado, promovendo-se a reparação das unidades térmicas restantes, cujo futuro, apesar do seu interesse histórico, se prevê venha a ser a venda a sucateiros.
Infelizmente, na opinião de muitos altos responsáveis, não existe material suficiente nem condições para a criação de um núcleo histórico ferroviário, pese embora a pequena resenha que se fez acima, sobre o que ainda existe.
Aliás, a possibilidade da criação de um núcleo desta natureza, nem tão pouco foi mencionado no discurso de tomada de posse do primeiro Presidente da Fundação que detém o Museu Nacional Ferroviário o Sr. Dr. Carlos Frazão, tendo sido completamente ignorado a existência do Barreiro e toda a sua história ferroviária.
É evidente, para quem quer ver, que o Barreiro detém ainda um enorme património Ferroviário.
Ignorar esta realidade, é ignorar toda a história feita por homens e mulheres que trabalharam nos caminhos de ferro; é ignorar a importância económica e social das várias profissões exercidas ao serviço do Caminho de Ferro, tais como maquinistas, revisores, guarda fios, serralheiros, mecânicos, electricistas, factores, chefe de estação, manobradores, guarda freios, etc etc.
Os quais, através dos seus instrumentos específicos de trabalho, como é o caso do célebre “J “, contribuíram para a construção da memória colectiva de um Povo, o Povo do Barreiro, a que acrescentam o colorido das suas histórias e aventuras, pois qualquer Ferroviário tem sempre uma “estória” para contar.
“Estórias” feitas de trabalho, labuta, luta, dor, mas também muitas alegrias e orgulho de pertencer a uma classe profissional que mudou a face do Barreiro, a partir de 1954.
Se todas estas peças, estas memórias, não chegam para criar no Barreiro um núcleo Museológico Ferroviário, então o que fazer com a memória de destacados Ferroviários Barreirenses que participaram activamente na vida cívica e politica do Barreiro e do País, dos quais se destacam: Miguel Correia, dirigente da CGT anarquista e “o maior agitador Ferroviário que houve em Portugal”, segundo alguns historiadores; mais recentemente, Germano Madeira e Manuel Cabanas. Isto só para citar alguns.
Não podemos igualmente esquecer a intervenção cívica de muitos ferroviários, ilustres anónimos, que fundaram (e, nalguns casos ainda participam) várias associações e colectividades, como é o caso da Associação de Classe Metalúrgica e Artes Anexas, em 1903, formada essencialmente por operários Ferroviários.
Ou os que fundaram a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Sul e Sueste; a Casa dos Ferroviários, actual sede do Sindicado dos Ferroviários, actualmente já em processo de degradação; a Cooperativa Cultural Popular Barreirense e o Instituto dos Ferroviários; o Grupo Desportivo dos Ferroviários que tem tido enorme importância ao nível do Desporto Nacional.
Será que tudo isto não constitui material mais que suficiente para criar um núcleo museológico Ferroviário?
Um Núcleo que seja mais que um simples armazém de máquinas antigas, cheias de pó e que abre uma vez por ano como é o de Estremoz.
Um Núcleo vivo, com pessoas e máquinas ainda a trabalhar onde seja possível, atrair, por exemplo, um sector determinado do turismo denominado por “turismo ferroviário”, impulsionado por associações nacionais e internacionais de entusiastas do Caminho de Ferro, que normalmente, gostam de ver a locomotiva 1810 a trabalhar; podendo dar “uma voltinha” com a 1225 e ouvir o roncar do motor diesel 1425.
Um museu vivo onde os ferroviários reformados possam ajudar a reparar a automotora 112; onde se possam realizar pequenas viagens turísticas de comboio a partir do Barreiro com material diesel já fora de serviço; onde sejam relembradas as artes e ofícios, e memórias de muitos ferroviários, que, no fundo são também as memórias colectivas de um Povo. O Povo do Barreiro.
José Encarnação
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