As pernas começaram a tremer-lhe, nas mãos já lhe faltavam as forças, o ferro frio dos degraus parecia distanciar-se, o chão firme dez metros abaixo desaparecia na náusea e na escuridão.
Quanto desejava ser ele a colocar aquela bandeira, que transportava tão carinhosamente enrolada bem junto do coração! Fizera questão de frisar isso na última reunião preparatória.
Como mais responsável, cabia-lhe a acção máxima muito embora soubesse sofrer de vertigens, por experiência já vivida em outras ocasiões.
Estranha sensação aquela, que o fazia perder o equilíbrio, como se um vórtice puxasse para baixo o corpo leve, por instantes imponderável, sobre pernas que se assemelhavam a varas verdes ao vento.
Tinha sido assim na janela do 3.° andar no prédio do homónimo Costa, na Rua Miguel Pais, quando participara nos exercícios dos Bombeiros do Sul e Sueste, a convite do Nicolau.
E que bem se tinham comportado os valentes soldados da paz, uma autêntica luva branca na cara do inspector, que insinuara estar a corporação mais preocupada com política do que com o treino e preparação dos homens.
Mas não podia dar parte de fraco, já estava a meio da subida, o que iriam pensar os camaradas que aguardavam expectantes cá em baixo?
Mais um degrau… um frémito de tenor!
— Vou cair!?!
Joaquim fora cedo para os Penicheiros, toda a noite se mostrara bem a toda a gente, jogara, brincara com meio mundo, pusera em prática a primeira parte do plano que pressupunha como haviam combinado na reunião, ser bem visto.
— Eh! pessoal amanhã é dia de trabalho, vou andando para casa.
— Já, tão cedo? São dez e meia, aguenta mais um bocado que vamos juntos.
— Ná! O corpo anda moído, o trabalho é duro, e às seis da manhã já estou a pé.
— Então bons sonhos, hem! Não te esqueças da Olinda…
— Toma tu ‘conta da tua, que à minha não lhe falta nada!
A confiança mútua dava para brincadeiras mais brejeiras, havia uma enorme amizade entre aquela geração jovem, criada num espírito novo de fraternidade e esperança na transformação da sociedade, soprada pelos ventos que vinham do Leste.
De facto não andavam muito bem as coisas lá em casa. Casados ia para três anos, Joaquim e Olinda viviam a angústia de evitar os filhos, para que a desgraça da falta de dinheiro não fosse agravada.
O ordenado não chegava a meio do mês, as dívidas acumulavam-se, e ainda tinham de acudir aos pais.
O pai de Joaquim, velho pescador do rio, incapacitado pelo reumático, sem reforma, vivia à míngua dos filhos.
— Raio de vida, mulher! Não me chateies com as reuniões. Já sabes que chego tarde e pronto.
— Pois é, e eu fico aqui sozinha em casa!? Tu vais para a colectividade, tu vais para as reuniões, e eu fico aqui feita múmia!
Olinda trabalhava na cortiça, mas nos últimos anos, o trabalho era cada vez mais escasso, três ou quatro meses por ano, o resto do tempo era uma miséria, nem subsídios, nem abonos, nada.
Muito jovem, doze anos apenas, com poucos meses de casa, participara numa célebre luta, ao lado das mais velhas, para exigir salário igual ao dos homens, pois era igual o trabalho que faziam.
Foram dias inesquecíveis aqueles, em que ouvira falar pela primeira vez em greve, ao lado da Elisa Russa, da Germana, da Joaquina, de tantas outras mulheres corajosas, «fabricantas» como ela, que tinham batido o pé aos patrões e conseguiram um aumento dos salários, ainda que não igual ao dos homens.
— O importante é que tenhamos conseguido o aumento, é uma grande vitória para as mulheres trabalhadoras — dizia a Vitória de nome, das mais entusiastas grevistas.
— Pois é, mas o encarregado já me disse que agora ganhamos mais, temos que tratar mais cortiça!
— Grandes cabrões, querem dar com uma mão e tirar com a outra. Mas já sabemos o que vale a unidade, se for preciso fazemos outra luta!
Olinda recordava com nostalgia aqueles dias, dois consecutivos, em que as operárias juntavam a comida à hora do almoço, muito modesta e frugal, e comiam todas em conjunto, entre risos e dichotes brejeiros, porque para além da tensão, o momento era de esperança.
Sentira que naquela altura deixara de ser miúda. Agora, com aquela experiência, já era mulher feita!
— Também gostava de ir à colectividade, de participar nas reuniões do Partido. Sei muito bem o que quero, ou esqueces que já estive numa greve?!
— Não é isso, mulher. Já sabes que não é hábito as senhoras saírem à noite, não fica bem…
— Ah! Não fica bem?! Mas foi no baile, à noite, que tu me conheceste!
— Isso é outra coisa, as moças vão acompanhadas pela família, é um dia de festa, vai lá toda a gente.
Pois é, meu malandro, as mães vão tomar conta das meninas. Mas quando ia à noite ter contigo a casa da tua tia, viúva, antes de casarmos, já não te importaste!
Questão nova, velha questão, a da participação das mulheres na vida das colectividades e no trabalho político.
As mulheres portuguesas tinham encetado os primeiros movimentos emancipadores durante a República, mas o eclodir da ditadura militar viera reprimir e sufocar o grito libertador.
No entanto, a sua crescente participação na vida económica (na cortiça, nos têxteis, na costura) obrigava a rediscutir o papel de subjugação ancestral que a sociedade lhes atribuía.
Já tinham abordado a questão na reunião do Comité Local, tinha-se mesmo discutido a criação de um organismo de mulheres, mas a vontade de avançar com os convites não era muita. Depois quem fazia a lida da casa e ficava com os filhos à noite?
— Ná! A actividade política não era muito apropriada para as mulheres — sintetizava um dos responsáveis, exteriorizando um pensamento comum e retrógrado.
As Olindas da nossa história teriam que esperar muitos anos para poderem ter a justa participação cívica.
— Cuidado, repara bem se és seguido, a polícia anda desconfiada! — dissera o Acácio.
— Se notares algo de suspeito volta aos Penicheiros e avisa o Garcia acrescentara o Reinaldo.
A polícia política, criada por Salazar, já tinha ultrapassado os primeiros tempos de incipiência e estava agora activa como nunca, especializada na repressão e perseguição de tudo o que cheirasse a oposição à ditadura. Afirmava-se cada vez mais como um sustentáculo do regime.
A PVDE (Policia de Vigilância e Defesa do Estado), que sucedera à Polícia de Defesa Política e Social, enquadrada por esbirros treinados na Europa, perseguia, reprimia, prendia, torturava. Os comunistas eram a sua maior preocupação, depois de uma fase voltada para o anarco-sindicalismo, e o PCP, na clandestinidade, único partido que de forma organizada combatia a fascização crescente, era o alvo principal.
Nas fábricas, nas escolas, nas ruas, nas colectividades, uma vasta rede de informadores (bufos), recrutados entre os situacionistas e legionários, muitas vezes entre a marginalidade, criavam um ambiente cinzento de desconfiança e angústia, que durante muito tempo haveria de castrar a iniciativa e a vontade dos portugueses, agravando um atavismo secular de submissão e conformismo.
Mas os sentimentos antifascistas de resistência e luta pela liberdade ganhavam raízes entre a juventude.
Muitos homens que tinham vivido a experiência, cheia de profundas contradições, da 1 República, contribuíam com o seu amadurecimento para a compreensão de que só de forma organizada e baseada na participação de largas camadas da população se poderia travar o passo à ditadura nacional, como então era conhecida.
Joaquim Rodrigues saiu calmamente, seguindo o caminho que sempre fazia no regresso a casa. Parou duas ou três vezes para acender o cigarro e voltou-se como que para proteger a chama, aproveitando para olhar as esquinas e escutar com atenção.
Ao chegar ao último quarteirão, inflectiu o percurso esgueirando-se para sul na direcção das vinhas, mas sobressaltou-se ao perceber um vulto colado às paredes, caminhando de forma insegura.
Um derradeiro momento de hesitação, o coração acelerado pela tensão que antecede as grandes circunstâncias.
Divisou um xaile de mulher, quando o vulto virou a esquina:
«Hum, deve ser alguém a cuidar de aflitos», pensou.
A acção estava em marcha, um impulso extremo indicava-lhe o caminho da Avenida da Bélgica, onde ficava o posto de transformação n.° 2 que alimentava de energia eléctrica todo o lado poente da vila. Se algum medo sentira, diluíra-se na excitação da aventura.
Caminhava agora seguramente, passo largo, sem pressas e ia recordando as discussões preparatórias:
— Os fascistas estão cada vez mais arrogantes, temos que lhes dar uma resposta exemplar — afirmava o José João.
— E necessário cortar a energia, vai ser uma tarefa arriscada. Quem vai fazer? — Perguntava o Chico Faquinhas.
Era tido como o elemento mais destemido do grupo, como em várias ocasiões tinha revelado, mas o acanhamento não deixava que tomasse a iniciativa.
O José Mina reparou na sua hesitação e veio em socorro:
Isso é tarefa aqui para o Joaquim, é a pessoa mais indicada!
Naturalmente terá que ser ajudado, alguém deverá ficar na cobertura! — aconselhou o Ferreira.
— Se estiverem de acordo eu proponho-me ajudar — acrescentou sorridente o Garcia.
Joaquim Garcia era amigo do outro Joaquim, amizade que vinha dos tempos da escola, consolidada no companheirismo e no partilhar de dificuldades e segredos da adolescência.
Normalmente onde estava um, estava o outro, por isso todos sorriram quando pediu a palavra, adivinhavam o que ele ia dizer.
Ainda havia um problema a resolver, arranjar forma de penetrar no posto de transformação. Disso se encarregou o Garcia, com a colaboração de outro jovem entusiasta e habilidoso, o Flávio. Corri sabão, conseguiu previamente um molde, a partir do qual modelou a chave para abrir a porta de chapa.
Vezes sem conta, os Joaquim discutiram os pormenores da acção, para tudo bater certo de forma sincronizada. Dez minutos antes da hora aprazada, Garcia foi-se postar na esquina mais próxima, vigilante.
Não havia movimento na avenida, nos últimos minutos não passara vivalma, quando o Rodrigues apareceu pelo caminho das vinhas, à hora certa, acendeu por três vezes o isqueiro. Era o sinal combinado, o caminho estava livre.
As onze horas do dia 27 de Fevereiro de 1935, a maior parte do Barreiro ficou completamente às escuras!
Antes que a guarda e as autoridades recuperassem da surpresa, já dezenas de bandeirolas vermelhas estavam suspensas dos fios de electricidade e de telecomunicações, em vários pontos da vila: estação dos barcos, Rua Miguel Pais, Rua Miguel Bombarda, Recosta, Verderena, Bairro das Palmeiras, estação do Lavradio, etc.
Nas últimas semanas, um minucioso programa tinha sido discutido e traçado em dezenas de reuniões das várias células dos organismos locais e da organização da juventude.
As brigadas tinham sido estruturadas e distribuídas no terreno, cada qual com a sua missão bem definida.
A colocação de bandeirolas era a tarefa mais entusiasticamente disputada, por vezes com calor excessivo, que levava a quebrar algumas regras de segurança.
O elevado número de contactos intergrupos, contrariando a regra da compartimentação, viria a custar muito caro quando sobreveio a repressão feroz.
Era enternecedor o entusiasmo e a destreza com que aquela malta nova atirava o fio com uma pedra atada, a bandeirola enrolada, que volteava uma, duas, três vezes.., e quedava-se suspensa dos fios, desfraldando o pano vermelho.
Nos últimos dias, várias acções de agitação, com pichagens, colagens e divulgação de documentos, tinham mantido animado o burgo. Tratava-se do cumprimento da «semana de agitação e propaganda», na qual participaram dezenas de militantes comunistas e outros democratas, unidos por fortes sentimentos antifascistas.
As bandeirolas drapeando ao vento, perante a alegria mal disfarçada de milhares de peitos barreirenses, como que diziam:
— Estamos aqui, estamos fortes, o fascismo não passará!
Havia mais de 10 minutos que o Barreiro estava mergulhado na mais profunda escuridão.
— Ajudem, ajudem… não consigo, não…!
Cá em baixo o pedido de ajuda paralisou momentaneamente o grupo, a ninguém tinha passado pela cabeça duvidar da possibilidade de êxito do Costa, sempre tão seguro e determinado.
Mas a consistência das equipas vê-se pela sua capacidade de reacção aos imprevistos. Joaquim da Aldeia foi o primeiro a reagir, avançou resoluto para os degraus e começou a subi-los com energia, em breve estava junto do Costa, hirto e rigidamente agarrado aos ferros:
Dá-me a bandeira, não há problema camarada.
— Tira-a de dentro da minha blusa, não me consigo mexer.
Uns momentos de atrapalhação, passar pelo amigo aterrado, tirar-lhe o pano de dentro da camisola e continuar a subida não foi tarefa fácil.
O Rodrigues também subira e ajudava a descer o Costa. Toda a equipa estava ansiosa, o Joaquim, da Aldeia Galega por nascimento, descia finalmente, arfando de cansaço e de contentamento, embargada a voz pela emoção:
— Já está lá em cima! Já está lá em cima!
No dia seguinte, 28 de Fevereiro de 1935, a bandeira volteava ao vento, no cimo da chaminé das oficinas dos Caminhos de Ferro, ali para os lados do Palácio do Coimbra.
Símbolo do orgulho revolucionário, da esperança num mundo melhor, da liberdade e da dignidade que o salazarismo roubava, a bandeira vermelha ficará para sempre na história do Barreiro operário, resistente e antifascista,
BARREIRO, UMA HISTÓRIA DE TRABALHO, RESISTÉNCIA E LUTA
ARMANDO SOUSA TEIXEIRA
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