No ano lectivo de 2003/2004, já me sentia recuperada para desenvolver actividades lectivas, às quais dei amor, competências e algum saber.
Ao mesmo tempo que voltei, emocionada, no segundo semestre, à minha ESE de Setúbal, produzi um módulo de dezasseis horas, distribuídas por oito aulas, sob o título, ousado para horário tão escasso, “O Amor na Literatura”.
Fi-lo para a Universidade da Terceira Idade de Barreiro a cujo grupo de formadores pertenço, talvez, desde 2002. Realizei-o no mais histórico dos nossos estabelecimentos de Ensino, a Escola Secundária Alfredo da Silva (ESAS).
A ajuda, preciosa, de Nazaré Almeida e Manuel Alpalhão na Arte de dizer foi o suporte vocal que a musicalidade da maioria dos textos recolhidos exigia.
Transmitiram-lhe, também, uma excelente dinâmica na classe, com cerca de duas dezenas de pessoas, uma delas, muito jovem, vinda da Suíça (caríssima, se estiver cá e me vir, faça o favor de dizer-me: “Sou eu!”)
Do que sei, dois formandos já nos deixaram: a querida Luísa Bravo, antiga colega de Faculdade, curso e profissão, e o Senhor Fernando Faria que, pelo interesse nas aulas – que acompanhava, religiosamente, com a esposa, D. Bernardete, muito cortês –, nelas intervinha, de forma pertinente e muito inteligente.
As coisas complicaram-se, de novo, na minha vida e, se nunca perdi o contacto com a UTIB, a impossibilidade de nela intervir incomodou-me muito. Felizmente que, desde 2010, tenho trabalhado um pouco na sua gestão e, durante este ano lectivo, dei, em Novembro de 2011, uma Aula Aberta, no Auditório da Biblioteca Municipal, participada por muitas pessoas, o que me agradou bastante: ainda sei ser formadora!
Claro que o tipo de situação agora referido é muito diferente da actividade regular que tive há uns anos.
Durante quase quarenta anos.
As pessoas que me acompanharam na “Alfredo da Silva” ficaram-me na memória, embora não tenha voltado a encontrar algumas delas.
Em 2009, o Senhor Faria publicou um livro, Memórias de uma Existência: História e Histórias da terra do barro, da pesca, do sal, do vinho e do carcanhol, que incluiu excertos da obra, em C.D., ditos por Manuel Alpalhão. Nela, a realidade e a criatividade entrelaçam-se. (1)
Não sendo natural daqui, as muitas décadas cá vividas fizeram dele um barreirense de adopção, como tantos, e eleição, pelo amor à (e conhecimentos acerca da) nossa terra, empenhado na divulgação da mesma através da História e da Literatura.
O Dr. José Pereira, ilustre conterrâneo, várias décadas professor, depois formador na UTIB, escreveu, no Prefácio do livro: “Quando o Fernando Faria (meu aluno de História Local na Universidade da Terceira Idade do Barreiro) me pediu que prefaciasse um seu trabalho de pesquisa e imaginação que disse ter sido sugerido pela dinâmica das referidas aulas de História Local, veio-me à ideia a convivência amiga e companheirismo de Augusto Abelaira (…) mas também de uma pequena tertúlia que funcionava no 1.º andar do extinto café Chave de Ouro (…).
Ali se falava de Literatura. De História, de Poesia e, por vezes, de Política da Vida.” (2)
Política da Vida que será um dos pilares de uma terra de Trabalho como a nossa, que nos ensinou a compreendê-la, bem como o âmago do Barreiro, terrinha, vila, cidade onde os sacrifícios da população nunca foram regateados, ao longo de séculos, em prol de melhores condições, que aconteceram, apesar – entre outras contrariedades – da brutalidade fascista, no passado século, “requintada” no Barreiro e em mais alguns locais.
Mesmo com os complexos problemas económicos actuais.
Barreirenses que têm dado lições de civismo e identidade ao longo da nossa História. E, a este propósito, diz, o Autor, na Introdução: “Como nos sentimos? Como nos identificamos? Com que nos identificamos?
Se não conhecemos e reconhecemos a nossa identidade não sentimos a percepção de nos sabermos definir e identificar.” (3)
Fernando Faria faz uma “Sinopse Histórica – Cronologia dos Acontecimentos”, em tabelas cuidadas, (4) na qual referirá em “Povoamento”: “1878 – O Barreiro tem 4843 residentes e a maior densidade: 254 habitantes por Km 2. em toda a zona que foi o Ribatejo medieval.” (4)
(Como a nossa terra cresceu! Tanto que nos deu e tem dado ao País!)
Em “Locais de Culto e Penitência” apresenta um panorama da vida, laica e religiosa do Barreiro. Por exemplo, quanto à chegada de Nossa Senhora do Rosário, com uma Referência (1): “De Lisboa, dirigia-se um barco, transportando a imagem para o Rosarinho, Moita, por dificuldades de navegação devido a marés e correntes, entenderam aportar ao Barreiro, no Mexilhoeiro, mais tarde ‘Cais do Rosário’. A imagem ficou no Barreiro.” (5).
As histórias cruzam-se com a História e “Era uma vez” chega até nós. “No tempo em que tudo era verdadeiro e nada se registava, naquele lugar, viu a luz da natureza e respirou o ar marinho o primeiro ser humano nascido naquele vasto areal, areal que um dia viria a pertencer ao concelho denominado Barreiro. Ali nasceu um querubim!
Estava ali, saído da raiz e vivo, o tronco da árvore geradora de todos os ramos genealógicos barreirenses. Daí em diante, a história foi-se reescrevendo a si mesma.
(…)
Os mistérios do Universo, as forças da natureza e os ditames da História ecoam na mente e desafiam a imaginação.” (6)
Como em várias histórias feitas História, diz o Autor, a propósito de uma grande intervenção aqui feita no século XVI: “A Vila Nova de Barreiro, autónoma e senhora de si quer ajudar a sua gente (…). Cria a Casa do Hospital, as maleitas são de todos os tempos e deverão ser tratadas e dado conforto a quem as tem, nesta terra, esta ajuda era um bálsamo necessário. (7).
Mais uma vez a religiosidade vai casar-se com o bem-estar terreno: “O século XVI está no fim e mais uma obra toma vulto. D. Francisca de Azambuja manda erguer na Verderena o Convento da Madre de Deus. Os Franciscanos têm uma nova casa, o seu convento dos Prazeres na Telha, por insalubre, tinha sido extinto. (…)
(…)
No século XVI existiam confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Negros em Palhais e Barreiro, mas o pecado de lesa humanidade era dos seus senhores.
Penosa e desumanamente se trataram seres humanos até, 1869, foi este o ano da extinção que nunca deveria ter existido.” (8) Espíritos e corpos são ressarcidos.
A ironia embeleza a narrativa que tento ler a acompanhar o ritmo, vibrante, que Manuel Alpalhão, no C.D. (como sempre o oiço, dentro ou fora de casa, em espectáculos ou não, excepto quando fala com o nosso neto David,) imprime às palavras do Autor: “A dama vestida de escuro, senhora de elevado carácter e com um importante e extenso nome, nome com mais sílabas que uma centopeia tem de patas, como estivesse em clausura, raramente saía da sua casa, e, quando saía, apenas se dirigia para a igreja. Comportava-se como prisioneira em si mesma.
(…) Mas a escrava que sempre a acompanhou aos palhais, tão devota com a sua dona, jamais voltou ao confessionário, a sua boca tinha de ficar calada para sempre.
(…) ” (9)
O Autor passa, um pouco mais à frente, para uma narrativa contida, e informativa (ainda o leio e escuto Manuel Alpalhão):
“A dama vestida de escuro vivendo com vontade de morrer, sem serenidade de espírito, expulsou da sua consciência a dor e os remorsos pelos seus actos. Ao lado do seu corpo inerte estava uma adaga.
Nunca antes um defunto tinha sido tão chorado e um funeral tinha sido tão faustoso. Há uma força inconsciente que arrebata as consciências, todos choravam a dama benfazeja, piedosa alma que ajudou os pobres e protegeu o clero.” (9).
(O que, de forma idêntica, continua, aliás, hoje, a acontecer na nossa Cultura.)
E a loucura, confundida com o poder: “Quando ‘Garruço’ soube estar o Rei na sua terra, pulava de contentamento, gesticulava e dizia em voz sonora: – Quero falar com o rei, eu também quero ser rei!
(…)
Sabemos ver os outros com os nossos olhos sem sabermos como os olhos dos outros nos vêem.
Como, não se soube, mas o rei, alguém por ele, ou um embusteiro, foi sabedor das pretensões do pobre diabo. Foi vestido com velhos trajes similares aos usados pela nobreza e disseram-lhe:
– Pronto, já és rei!
(…)
Uma senhora idosa, de pele enrugada pela vida e escurecida pelo sol, adiantou-se dos demais e expressou-se:
– Ai, minha Nossa Senhora, um estupor destes a julgar-se rei de verdade, mas no lugar da coroa tem um garruço!
(…)
‘Garruço’, aquele homem de amarga vida, cuja mente nunca lhe permitiu ter mais de uma ideia, (…) despiu os trajes e num suspiro retorquiu:
– Eu já não quero ser rei!” (10)
(Soube ter um assomo de dignidade em relação às patetices que, durante séculos, se fazia aos menos inteligentes, mas mais humanos e sensíveis dos que faziam pouco deles.)
E os sacrifícios de pais pelos filhos, lições de vida que herdámos e temos transmitido: “Foste pai de cinco filhos, foi obra. (…) Cinco vezes sentiste cargas de responsabilidade e amor.
(…) Foste a luz da casa onde não havia mãe e uma velhinha dedicada e carregada de ternura nos afagou até ao dia da sua morte.”
(…)
Veio o dia em que disseram que a muleta trazia a bordo um corpo sem vida, eras tu.
(…)
A nossa saudade e dor foram do tamanho do mar onde pescavas e só afrouxaram quando, já homenzinhos, começámos a ter consciência da vida.
Tu não voltaste. O mundo nada nos deu e roubou-nos o pai.” (11)
(Esse Mundo que ainda não mudou o que deveria e que, cobarde, tudo continua a tirar aos desapossados; que Planeta é este, afinal?)
Língua Portuguesa, esta Língua que nos forma em cada dia, quase sempre bem tratada, própria de quem não teria saberes linguísticos avançados, com frases justas, sob os pontos de vista das propriedades da textualidade, sem traços excessivos de um novo rico da História, da Cultura, da Linguística, da Poética.
Oiço Manuel Alpalhão, directamente, nas duas estrofes iniciais da “Ode ao Barreiro”, já perto do fim do livro:
“Grande porta aberta ao rio,
Bela, franca e nobre entrada
Na floresta, cenário
Que pelas terras avultava,
Todo ele à água se unia,
Na imensidão se ampliava.
Vida, somente existia
No rio da água de prata
Fecundo por natureza
E na floresta. Essência
Fértil, enorme riqueza
Com odor a maresia.” (12)
Os recursos estilísticos dados pelo encavalgamento, a metáfora, a personificação, e, ainda, a sinestesia trazem-nos até hoje, a prosa poética, feita nos dias, em muitos,
muitos dias e noites, onde o suor e amor de Barreirenses moldados pelo Tejo “Com odor a maresia” (12) que tanto nos fez crescer, ao longo do percurso do Barreiro e de cada um de nós, nos caminhos da História, heróis do livro, da sua Ode e de uma terra que se tem feito e se faz.
(No momento, tardio, de ter sabido do passamento de Fernando Faria, deixo-lhe esta homenagem.)
Manuela Fonseca *
* Colaboradora do barreiroweb.com
Referências
(1) Fernando Faria, Memórias de uma Existência: História e Histórias da terra do barro, da pesca, do sal, do vinho e do carcanhol. S/l. Edição de Autor, 2009, 154 pp..
(2) “O prof. amigo Zeca Pereira”, op. cit., “Prefácio”, p. 5.
(3) Fernando Faria, op. cit., “Introdução”, p.7.
(4) Sinopse Histórica – Cronologia dos Acontecimentos, op.cit, p. 20.
(5) Op. cit., p. 23.
(6) Idem, pp. 32-33.
(7) Idem, p. 47.
(8) Idem, pp. 48-49.
(9) Idem, pp. 85-86.
(10) Idem, pp. 129-131.
(11) Idem, pp. 143-144.
(12) Idem, p. 145.
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